quarta-feira, 18 de abril de 2018

GPI Deus por Dom Mauro Morelli

Divulgando...
Boa tarde povo!
4ª dia de Pensamento Inquieto! Começamos com os textos anunciados na primeira postagem. Os mesmos serão divididos em várias postagens pra facilitar a leitura.
Degustem!


GUETO DO PENSAMENTO INQUIETO
DEUS
Dom Mauro Morelli – Bispo de Duque de Caxias, Estado do Rio de Janeiro
O Pensamento Inquieto (Curso de Extensão Universitária a Distância). Organização de Clodomir de Souza Ferreira, João Antonio de Lima Esteves e Laura Maria Coutinho – Brasília: CEAD/Editora Universidade de Brasília, 1993. (pp. 11 a 22).
QUESTÕES PARA REFLEXÃO
A grande questão hoje é a da perversão do sentido de Deus. Não é se Deus existe; é onde está Deus? Dom Mauro Marelli, bispo de Duque de Caxias na Baixada Fluminense – uma das regiões mais miseráveis do país – convive diariamente com um quadro desumano que ele considera uma blasfêmia contra Deus. Como se manifesta essa grande perversão do sentido de Deus, numa terra e num século que presenciou o holocausto, Hiroshima, e que “vive esta guerra blasfema mantida pelo ordem econômica internacional”? Onde está Deus, num mundo onde o ser humanos é aviltado, esmagado9, onde se verifica essa tortura permanente do homem, essa destruição institucionalizada da natureza? Essas e outras indagações estão neste texto perturbador, onde D. Mauro Morelli revela como, na sua trajetória de vida, a sua própria concepção de Deus foi se transformando.
            Creio que devemos agradecer a oportunidade de estar vivo, de poder encontrar as pessoas. Estive me perguntando porque me convidaram para este fórum da inquietude. Creio que existem várias pessoas que sustentam a mesma fé que eu, que vivem no mesmo caminho e que estão no meio universitário, e acredito que fui chamado aqui pela coordenação, pela reitoria, não por que eu seja um professor, porque eu não sou. E estive imaginando que miraram um espaço, dessa nossa realidade sócio-econômica, que deve inquietar a todos nós: a Baixada Fluminense, e, provavelmente, perceberam ali um cenário a partir do qual pudéssemos levantar inquietudes ou nos inquietar ainda mais.
            Não tenho nenhuma pretensão de fazer uma análise em estilo universitário. Gostaria de poder, talvez, partilhar um pouco da minha peregrinação, da minha própria compreensão deste mistério que é Deus, e não fazê-lo de forma acadêmica, mas como disse, uma peregrinação. Também sou peregrino, vivo neste mundo, nessa nossa história, penso, repenso, ajo, reajo, tanto quanto posso; às vezes tanto quanto me permitem. Sou brasileiro, mas a maioria dos padres não são.
            A minha fala não é muito característica de lugar algum. Fui criado no interior de São Paulo, vivi em muitas áreas deste estado, andei estudando um pouco no Rio Grande do Sul os temas de filosofia, morei na América do Norte, trabalhei na periferia de São Paulo, como bispo, e estou atualmente na Baixada Fluminense. Então o meu modo de falar não é bem característico de lugar algum, não consigo falar o ‘carioquês’ e não creio que retrate assim com tanta perfeição a forma caipira típica do falar do nosso interior paulistano. É importante que saibamos de onde as pessoas vêm, a sua caminhada.
            Cresci num tempo em que as coisas eram muito definidas, muito seguras, muito verdadeiras dentro da minha igreja. A minha experiência de Deus é marcada pelo contexto em que cresci. Nasci em 1935, e apesar do estrago, não sou tão velho assim. Cresci nesse período, aprendi a das os passos no caminho religioso ensinando num ambiente predominado por capuchinhos, que vieram de Trento, no fim do século passado para trabalhar nesta região do Brasil, como missionários. Da minha primeira experiência como criança, diria que há coisas bonitas, encantadoras. É interessante dizer isso: estudei em escola pública, meus irmãos, todos, passaram por escola religiosa, tornei-me bispo e eles não. É interessante esse tipo de encaminhamento. Mas a minha experiência religiosa de criança foi bonita, fascinava-me toda aquela liturgia, todo aquele rito.
            Com seis anos eu saía de casa para ir à missa do dia, ninguém nunca me mandou e nem também recebi grande incentivo da família, Agora, na minha caminhada, devo dizer, com muita simplicidade, que a minha experiência de Deus nesse caminho foi uma experiência que acabou sendo torturante, porque me vi, muitas vezes – talvez aqui alguns de vocês possam se identificar -, todos os dias à noite, de joelho, aflito condenado a rezar até não mais poder quantas ave-marias conseguia para pedir a minha salvação, do meu pai, da minha mãe, dos meus irmãos, dos meus vizinhos, da minha professora, de todo o mundo, até de exaustão dormia, desmaiava em cima da cama. Uma experiência de Deus? Creio que esta experiência de Deus deve estar presente na história de muitos que vivem nessa nossa cultura.
            Tenho caminhado nesses meus 57 anos sempre pela experiência de Deus. Fui aprendendo, buscando, e me interrogando. Diria que não consegui chegar a ser herege, que não é todo dia que se produz um herege na igreja. Não sei se nos últimos trezentos anos nós conseguimos produzir algum. Alguém tem notícia de algum herege nos últimos 300 anos? Parece que frei Leonardo Boff estava se encaminhando para esse rumo; tenho a impressão de que tiraram a oportunidade dele virar herege. Não creio que todo dia apareça um bom herege, é preciso ser muito competente, e confesso não ter tanta competência assim. Um bom herege que apareceu foi Lutero. Minha previsão é que Lutero, até o fim do século, será proclamado santo por algum papa da Igreja Católica, para vocês verem como as coisas caminham e evoluem.
            A revelação da minha experiência de Deus está ligada aos meus estudos de filosofia. Para ser padre é preciso estudar filosofia e teologia. Estive no Seminário de Nossa Senhora da Conceição, de Viamão, no Rio Grande do Sul, durante três anos estudando filosofia, mas, curiosamente, não foi a reflexão filosófica que me fez questionar a minha visão, a minha experiência, a minha fé.
            A minha mudança na compreensão de Deus tem ocorrido exatamente, a partir da dimensão do concreto, do histórico, do testemunho, do contra-testemunho dos cristãos do nosso tempo. Assim comecei a enxergar de forma diferente o rosto de Deus. A partir do contato de uma vivência da fé que marcou muito a vida de pessoas que até hoje continuam presentes num testemunho de cidadania na nossa terra, como o sociólogo Herbert Sousa, conhecido carinhosamente como Betinho.
            Refiro-me aos movimentos da ação católica. A ação católica na década de 1960 foi o espaço-laboratório de grandes transformações para muita gente, da própria experiência de Deus, dos caminhos da própria fé. A ação católica levou cristãos no mundo rural, no mundo estudantil, no mundo universitário a se perguntarem a respeito de Deus, olhando a história e a vida do povo. Essa ação católica foi determinante para muitos na caminhada de fé e no próprio encontro com a história, com a própria cidadania.
            Tive oportunidade de, curiosamente, passar pelo Seminário de Teologia, nos Estados Unidos. De vez em quando alguns ficam preocupados comigo, e digo: não, eu fiz curso no Pentágono! Curiosamente fui para lá por uma razão, como muitas das razões que explicam os acontecimentos, econômica. Como era o único estudante seminarista, da minha diocese, e o bispo queria me mandar para Roma, e a impressão que eu tinha dos professores de Roma era a pior possível, então disse: se o senhor me mandasse para Louvain ou para a Alemanha, iria com alegria, mas para Roma não. Ele respondeu que a diocese não tinha como fazê-lo e que se eu conseguisse uma bolsa na América do Norte poderia ir.
            Então ganhei uma bolsa, por sorte, não por ser tão inteligente. Resolvi o meu problema e tive a oportunidade de viver no exterior, o que é um benefício para qualquer ser humano, porque vivendo em outro país de forma lúcida, inteligente aproveita-se muito mais do que os nativos. Todo país tem belezas, virtudes, riquezas, expressões maravilhosas, como também tem limites, mesquinharias, e um cidadão que caminha pode muito bem aproveitar as coisas boas.
            Tive a oportunidade de viver nos Estados Unidos num momento histórico muito importante, quando a questão religiosa se tornou muito relevante na luta contra o racismo. Quando se afirma que Deus é negro, o que se está querendo afirmar não é mais uma das cores de Deus, e sim a idolatria do Deus branco; é a reação contra a idolatria de um Deus que é branco.
            Tive a ventura de começar a entender muitos dos jogos da nossa sociedade, da nossa história, a partir da militância no movimento social na década de 1960, e entender, de forma especial, a questão do Vietnã, a questão do racismo, destruindo a dignidade humana e a vida. Voltando para nosso país, confesso que cheguei atordoado com a ‘gloriosa’ revolução de 1964. Comecei a trabalhar no Brasil em 1º de fevereiro de 1966. Não foi fácil. Tive a felicidade de, para não dizer a bênção, desde o início do meu ministério, ser confrontado com a questão da relevância da fé numa terra de grande desrespeito àquilo que é precioso: a vida de uma criança e a dignidade humana. Tive a felicidade de ser convidado para trabalhar junto à Conferência dos Bispos do Brasil, como coordenador ou secretário regional, em São Paulo, um conjunto de trinta dioceses.
            De 1971 a 1981, estive muito presente nos acontecimentos da convocação, de mobilização, de coordenação que se viveu naquele período. Esse confronto com a verdade dolorosa, vergonhosa, criminosa que vivíamos foi, então, mudando muito a minha visão de Deus, a minha experiência de Deus. Como disse, estou querendo colocar um pouco da minha peregrinação, da minha caminhada, porque não vim aqui como pesquisador, nem como filósofo, nem como teólogo. Vim como um peregrino da vida, alguém que vive na Baixada Fluminense. É a partir dessa realidade em que estou imerso, por opção e não Poe coação, que procuro entender a mim mesmo, entender o mundo, os meus relacionamentos com a vida, com a sociedade, com a história, com a minha própria igreja, e, evidentemente, isso me deixa terrivelmente inquieto.
            Para dizer mais, recorro, ainda, a alguns momentos em que tive uma grande experiência de Deus. Um desses momentos, que me atingiu profundamente em tudo aquilo que sou, foi em Rio Claro, no interior de São Paulo, onde era vigário de uma paróquia, vigário episcopal de uma região que era minha base, inclusive, de serviço na CNBB. Até ser bispo, nunca havia deixado de ter minha experiência de base, o que me dava certa credibilidade, porque todos sabiam que eu tinha uma presença real e constante na base da sociedade, na igreja,
            E a minha experiência mais bonita de Deus foi exatamente quando uma das vítimas da ditadura, um jovem filho de um engenheiro de Belém do Pará, tendo retornado do exílio, levado pela isca que foi lançada de que as pessoas poderiam regressar e se reinserir sem grandes traumas, num determinado momento de uma dessas figuras que representavam o poder. Esse jovem apenas retornou ao Brasil, foi feito prisioneiro, viveu a disputa da vários grupos do poder que queriam ver como ele era ‘prendado’ foi torturado horrivelmente e conseguiu fugir de um hospital em Recife. Na sua fuga parou em mês numa fazenda no interior, e por causa de uma pessoa, também ligada a essa realidade, que também tinha sido presa, esse jovem conseguiu fugir e bateu à minha porta. Fiquei terrivelmente chocado ao ver como um ser humano pode ser destruído. E como uma pessoa pode se encontrar, se recuperar de forma impressionantemente rápida; em vinte e quatro horas, um pouco mais que isso, talvez – o tempo em que ele permaneceu na minha casa. Ele me disse que tinha chegado no seu último dia. Se eu tivesse fechado a porta e não lhe permitisse a entrada, não teria mais condições de seguir em frente.
            Consegui fazer com ele atravessasse as nossas fronteiras, ficasse livre da ordem e do progresso que nos oprimia, e depois, do Peru, ele me mandou um desses cartões tridimensionais, com a gueixa piscando e dizendo: as férias estão maravilhosas! Na minha casa, todos os dias celebrando a missa e tudo mais, confesso que nunca senti o Senhor da vida e da história tão presente quanto nesse torturado da nossa história.
            Uma outra bonita experiência de Deus foi exatamente acolhendo um grupo de prostitutas. Aliás, gostaria de dizer para vocês que a experiência religiosa não nos livra da ambiguidade. Jesus se revela muito ambíguo – talvez a gente tenha que refletir um pouco mais sobre isto, sobre a própria ambiguidade – e ele coloca exatamente as prostitutas de uma forma terrivelmente subversiva, dizendo que elas nos precederão no reino do céu. Eu havia lido isso muitas vezes, mas num determinado momento da minha caminhada pode acolher um grupo de mulheres marginalizadas, e desse encontro tive também uma belíssima experiência de Deus.
            Todas as coisas têm seu lado interessante, cômico. As meninas estavam orientadas para chegar à minha casa, e depois havia um ônibus para que fossem levadas à casa de encontro. A minha própria irmã chegou do interior de São Paulo naquele dia, e assim que ela entrava na portaria uma menina perguntou: menina, de onde você é? Esse foi o lado cômico. Mas na abertura do encontro, confesso que, vendo aquelas mulheres em volta de mim tão injustiçadas, e sentindo nelas, ao mesmo tempo, tanta ternura e solidariedade, me comovi e penso que foi para mim uma das bonitas experiências de Deus.
            Aí está amigos, companheiros, companheiras, quem sabe, uma base da nossa inquietude. Busco no livro do Apocalipse, que é o livro da consolação, da esperança e não do desespero. Um livro que pretende ser uma profecia de ânimo, de coragem para as pessoas que sofrem. Nele estão denunciadas duas coisas terríveis: um crime e uma idolatria. O crime é exatamente a destruição do ser humano. As duas coisas mais terríveis denunciadas no Apocalipse: a destruição do ser humano e a perversão do sentido de Deus. Creio que a grande inquietação que perpassa muitas cabeças e muitos corações é exatamente a experiência terrível da destruição do se humano no nosso tempo e da perversão do sentido de Deus.

CONTINUA NA PRÓXIMA QUARTA...

Obs.: Os negritos itálicos são os destaques do texto original; os [  ], os negritos e os negritos vermelhos são destaques nossos.

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