quarta-feira, 27 de abril de 2016

COMO CONVERSAR COM UM FASCISTA?
SOBRE UM DESAFIO TEÓRICO-PRÁTICO
(Márcia Tiburi)

O genocídio indígena, o massacre racista e classista contra jovens negros e pobres nas periferias das grandes cidades, a homofobia, o feminicídio, a manipulação das crianças, em poucas palavras, o ódio ao outro, se estabelece em nossa sociedade no âmbito do extermínio da própria política. Sabemos que é preciso exterminar a política para que o capitalismo selvagem (tendencialmente, sempre selvagem) se mantenha. É preciso exterminar o desejo de democracia pelo autoritarismo efetivado na prática diária. Para exterminar a política é preciso que o povo a odeie e é isso o que o autoritarismo é e faz.
O autoritarismo é um modo de exercer o poder, mas é também um ideário, uma espécie de regime de conhecimento. Como visão de mundo, ele é fechado ao outro. Ele opera pelo discurso e pela prática sempre bem engrenadas que se organizam ao modo de uma grande falácia, ao modo de um imperativo de alto impacto performativo: o outro não existe e, se existe, deve ser eliminado. Ora, dizemos “regime de conhecimento” pensando na operação mental da negação do outro, mas o conhecimento como gesto na direção do outro é justamente o que é destruído pelo autoritarismo que se basta como máscara sem rosto do conhecimento transformado em ideologia, ou seja, em ofuscamento da verdade social.

Tudo o que não presta
Nada do que possamos chamar de conhecimento pode ser concebido fora de seu registro ético-político.  Se o registro do conhecimento funciona pela negação do outro, o conhecimento nega a si mesmo. Sem o outro, o conhecimento morre. O enrijecimento é uma prova da morte do conhecimento que se torna cegueira ideológica. A ideologia é a redução do conhecimento à fachada, como que sua máscara mortuária. O conhecimento, que deveria ser um processo de encontro e disposição para a alteridade que o representa, sucumbe à sua própria negação. Daí a impressão que temos de que uma personalidade autoritária é, também, burra, pois ela não consegue entender o outro e nada que esteja em seu circuito.
A propaganda é o método que sustenta a negação do outro. A propaganda fascista, a propaganda do ódio, que prega a intolerância, que afirma coisas tão estarrecedoras, como fez o famoso deputado Heinze  ao dizer que “quilombolas, índios, gays, lésbicas”, são “tudo o que não presta”, é a destruição do conhecimento, como relação com o outro, que está na base do desejo de democracia. Autoafirmação de ignorância, assinatura de estupidez. Mas é, ao mesmo tempo, a destruição da política por um discurso antipolítico de um agente que deveria ser político, mas que está, contudo, voltado para o instinto de morte antipolítico.
Em casos como o desse discurso podemos falar em uma prática discursiva “tanática”, exemplo perfeito da “tanatopolítica” contemporânea. Típico discurso fascista. Mas a quem esse discurso convence? Eis uma questão que precisamos nos colocar, até para poder combater o mesmo discurso ou para criar alternativas para a sobrevivência de uma política democrática, para uma política melhor, para um poder da diferença, um poder compreensivo que acolha a tradição dos oprimidos.
Quem fala o que fala, sem nenhuma responsabilidade, por um lado deve ser legalmente questionado, por outro, é preciso colocar em jogo a questão das condições de possibilidade que, na cultura, fazem surgir falas como a do deputado citado. Como alguém pode se autorizar ao discurso fascista que é fomentado por sua propaganda? De outro, quem é suscetível à esta propaganda? Se a propaganda fascista que é um tipo de discurso – e uma verdadeira metodologia de alienação social – continuar vencendo, não teremos futuro. Em que direção devemos agir diante desse estado de coisas?

Experimentum crucis
É neste contexto que podemos nos colocar a questão da qual proponho que façamos um “experimentum crucis” teórico-prático: como conversar com um fascista? Digo isso pensando que podemos avançar para além do discurso da denúncia e da queixa. Quem se sente atacado nem sempre deve contentar-se com a posição de vítima. Colocar-se na posição de vítima é um perigo e é muito diferente de ser sujeito de direitos. É uma péssima estratégia em tempos em que o poder está em mãos perversas que adoram imolar vítimas no altar do Estado e do Capital.
A vítima, dizia um sábio alemão que lutou contra o fascismo, sempre desperta o desejo de proscrever. Empoderamento é a saída. Contra a posição da vítima, podemos pensar na posição do guerreiro sutil, aquele que desafia o poder desde a sua interioridade, desde seu núcleo duro, para desmontá-lo estrategicamente. Neste ponto, em bases sutilíssimas, podemos falar de diálogo e a questão “como conversar com um fascista?” se torna um emblema do desafio democrático.
Quem luta por direitos sabe que a conversar é impossível. Mas da possibilidade de perfurar a blindagem fascista depende o recuo do fascismo, infelizmente, a cada dia renovado pelo fomento da propaganda fascista dos políticos antipolíticos e dos meios de comunicação de massa. O diálogo é, neste caso, a “metodologia democrática” básica que poderia operar em situações privadas ou públicas. O diálogo parece impotente diante do ódio. Ele parece delicado demais. Mas o diálogo em si mesmo é um desafio. Um desafio micropolítico, cuja colocação em cena pode nos ajudar a pensar no que fazer, no como agir em escala macropolítica.

Estamos no terreno de uma estratégia teórico-prática. Esse desafio tem três tempos:
1-    O tempo do outro, tempo apavorante enquanto o outro é sempre o desconhecido, aquele que ameaça em algum sentido a “minha” ordem;
2-    O tempo da abertura de si que implica perceber-se como um outro, o que só se dá ao nível do imaginário e do discernimento, pois jamais teremos acesso ao sentir e pensar do outro, assim como ele não terá do nosso, senão pela exposição cuidadosa do que sentimentos e pensamos;
3-    O tempo interminável, a saber, o da permanência na experiência do diálogo, ou seja, a manutenção qualificada da metodologia. Em outras palavras, permanecer no lugar do diálogo como insistência no encontro. Não ceder ao ódio, permanecer tentando entender e, ao mesmo tempo, oferecer certo desentendimento como oportunidade ao outro de entender, ele mesmo, a diferença para a qual está fechado. Nesse sentido, o diálogo é resistência.
O diálogo não é a conversa entre iguais, não é apenas uma fala complementar, mas a conversa real e concreta entre diferenças que evoluem na busca do conhecimento e da ação que dele deriva.
Para que o diálogo ocorra é preciso haver isso que chamamos de abertura ao outro. A abertura existe na mentalidade democrática, ela está aberta ao outro em função de experiências cognitivas e culturais. A abertura não existe no caso de uma personalidade autoritária, fechada ao outro também por motivos cognitivos e culturais, motivos que incidem na formação da experiência pessoal e coletiva.
A conversa com a alteridade que vai além dos argumentos, tem um ponto decisivo no âmbito afetivo. Não do sentimento apenas, mas do modo como nos “afetamos”, no sentido do que fazemos uns com os outros. Se o democrata está aberto ao outro, seu grande desafio pode ser mostrar como produzir essa abertura ao outro em nossa sociedade. Daí o sentido crucial do lema “como conversar com um fascista?” que se torna, na contramão, um imperativo experimental democrático que precisa ser antecipado na conduta de quem quer produzir democracia hoje.
Não podemos apenas nos queixar que essa abertura não existe, mas pensar em como deve ser produzida. Em outras palavras, a questão pode ser a de como apresentar a experiência do outro a quem ainda não o concebeu? Penso nesse caso, em uma didático-política e em uma estético-política. Infelizmente, não temos as instituições convencionais agindo nessa direção. As instituições negam o outro. Precisamos, portanto, mudar as instituições, ou criar instituições capazes de contemplar o outro.
Sabemos que nossos povos nativos eram, e são, abertos ao outro, assim como sabemos que os colonizadores não eram e que os “ruralistas” de hoje não são. Sabemos que os machistas e sexistas, que os exploradores e manipuladores em geral, também não são. Na base de todos eles está o princípio do fascismo como ódio aos diferentes. Os diferentes que devem ser excluídos. O fascismo produz opressão de um lado, de outro, seduz para a forma autoritária de viver garantindo aos que vivem esvaziados de pensamento, ação e afeto, que o mundo está bem como está. O fascismo cancela, ao nível do discurso exposto nas mídias, nos púlpitos e palanques que constroem opiniões públicas e mentalidades coletivas, a chance de pensar no que estamos fazendo uns com os outros que poderia nos garantir uma vida mais prazerosa. Precisamos revitalizar esta pergunta como pergunta coletiva capaz de orientar nosso diálogo. O fascismo também colonizou os prazeres pelo estético-moralismo que é o consumismo ao qual foi reduzida a antiga e emancipatória categoria ética da felicidade.  Mas não devemos aderir a isso só porque as coisas se apresentam assim hoje.

Treino para o ódio
Dizemos há séculos “o poder corrompe” como se tivéssemos sido treinados para essa citação formal, sem que saibamos muito sobre seu conteúdo. Assim como muitos dizem “tudo o que não presta” imitando uns aos outros no gesto espetacular de falar por falar. A fala por imitação se funda na citação. O autoritarismo é “citacionalista”. Repete ideias lançadas no âmbito da propaganda fascista, ela mesma viciosa e repetitiva. O autoritarismo depende de sua repetibilidade, pois ele é uma máquina de produção de subjetividade pelo discurso. Daí a importância da falação odiosa.
Não pensamos no que dizemos. Para entender o conteúdo do que dizemos precisamos entender a forma com que dizemos. E isso é muito complicado. O diálogo o é mais ainda porque não nos ocupamos em prestar atenção no que pode ser um diálogo, ele mesmo um modo de conversar cheio de potências. Não fazemos a sua experiência na microfísica do cotidiano que poderia nos dizer algo sobre nossa potência de transformação em termos macrofísicos.  Precisaríamos pensar mais, é verdade, mas vivemos no vazio do pensamento, ao qual podemos acrescentar o vazio da ação e o vazio do sentimento.
Atualmente, como em todas as épocas em que o autoritarismo é a prática de extermínio da política, os cidadãos são chamados diariamente ao treinamento do ódio. Sabemos que nenhum afeto é totalmente espontâneo, que nenhum sentimento é natural. O treino para o amor ou para o ódio se dá pela repetição dos discursos. É preciso repetir e aderir, copiar, imitar. Falar por falar. Repetir o que se diz na televisão e nos meios de comunicação. Ficar muito tempo ouvindo a mesma coisa para dizê-la de qualquer jeito. Ou dizer sem sequer saber o que se diz. No gesto do mero “compartilhar” sem ler que se tornou fácil (tanto quanto o “comprar com um clique” pela internet) sabemos que estamos na mera reprodutibilidade da informação que nada quer dizer. Fugimos do pensamento analítico. Fugimos do discernimento que ele exige.
Ora, a fuga do pensamento produz o seu vazio. Ela o retroalimenta. Só a interrupção do círculo vicioso do pensamento vazio é capaz de mudar o rumo autodestrutivo nos âmbitos micro e macropolíticos. O ódio é o afeto capitalista que fomenta a morte diabólica do diálogo. Política é produção simbólica. É sinônimo de democracia como laço amoroso entre pessoas que podem falar e se escutar não porque sejam iguais, mas porque deixaram de lado suas carapaças arcaicas e quebraram o muro de cimento onde suas subjetividades estão enterradas.
A política como perfuração de muros ideológicos depende da persistência da resistência. Depende de aprendermos o que pode ser um diálogo enquanto guerrilha metodológica que precisa ser mais forte do que o ódio nesse momento. Não acabaremos com o ódio pregando o amor, mas agindo em nome de um diálogo que não apenas mostre que o ódio é impotente, mas que o torne impotente.
Então precisamos começar a conversar de um outro modo, mesmo que pareça impossível.

Blog Marcia Tiburi > Como conversar com um fascista?


Querem que nosso continente volte a ser quintal dos EUA, afirma Frei Betto

Para escritor, há uma forte influência estadunidense na ascensão conservadora da América Latina

Para Frei Betto, governos progressistas da região erraram em não politizar o povo / José Cruz/Agência Brasil

“Os ianques farão de tudo para que o nosso continente volte a ser o quintal deles”. Para Frei Betto, uma das principais referências da história dos movimentos populares no Brasil, a ascensão conservadora no Brasil e em outros países da América Latina tem influência direta dos Estados Unidos. Ele acredita, porém, que os “governos progressistas” que chegaram ao poder no continente na última década precisam reconhecer seus erros, como o de “não cuidar da alfabetização política do povo”.
Ao longo dos seus 71 anos, o frade dominicano Carlos Alberto Libâno Christo participou da Ação Católica e enfrentou a repressão ao lado de Frei Tito e Carlos Marighella, líderes de esquerda mortos pela ditadura militar. Por conta de seu engajamento, Frei Betto foi preso duas vezes entre as décadas de 1960 e 1970.
Com a ascensão de Lula à presidência, ele coordenou o programa Fome Zero, posteriormente substituído pelo Bolsa Família. Entretanto, após dois anos, saiu do governo por críticas às mudanças ideológicas do Partido dos Trabalhadores (PT).
Ele, que é autor de mais de 60 livros, relaciona a tentativa de retirada da presidenta Dilma Rousseff aos processos que levaram à deposição dos presidentes Fernando Lugo (Paraguai) e Manuel Zelaya (Honduras). “Considero o impeachment um golpe branco”, declara, taxativamente.

Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato: O Brasil está dividido. Qual a sua opinião em relação aoimpeachment?
Frei Betto: Considero o impeachment um golpe branco, à semelhança do que ocorreu em Honduras [em 2009] e no Paraguai [2012]. Entre as vozes das ruas e as das urnas, fico com a última. Se houver impeachment, o Brasil entrará em turbulência política permanente, pois qualquer oposição tenderá a recorrer a este recurso.

Quais as consequências de uma eventual derrubada da presidenta?
Os governos Lula e o primeiro de Dilma foram os melhores de nossa história republicana, mas cometeram erros graves: nenhuma reforma estrutural, falta de valorização dos movimentos sociais (sempre chamados na hora de apagar incêndios), estímulo ao consumismo, despolitização da nação, entre outros. Apesar disso, os mais pobres tiveram conquistas importantes: 45 milhões saíram da miséria, não houve criminalização dos movimentos sociais e a política externa foi independente. Se Dilma cair, o Brasil passará do Estado de Direito ao Estado da direita.

Independentemente do processo de impeachment, qual o futuro do PT? Existe possibilidade de uma guinada à esquerda?
Não creio na recuperação do PT, infelizmente. Ele jogou na lata de lixo da história os três capitais simbólicos que o caracterizavam na origem: ser o partido da ética; ser o partido da organização da classe trabalhadora; ser o partido do horizonte socialista para o Brasil, o que traria mudanças estruturais. O envolvimento de alguns de seus dirigentes na corrupção ficará como uma ferida incicatrizável. O PT tem que se reinventar de outro modo. Mas antes deveria fazer uma séria autocrítica.

O senhor viveu a violência da ditadura. Como enxerga o atual momento, no qual alguns setores reivindicam a volta do regime militar?
Isso é choro de derrotados e fracassados. Felizmente, os militares estão com as barbas de molho…

Vários “governos progressistas” têm sofrido derrotas na América Latina. Existe uma conexão entre os diversos movimentos dessa ascensão conversadora no continente?
Claro, pois os Estados Unidos não dormem em serviço. Quanto mais puderem desestabilizar os governos progressistas da América Latina, mais o farão. Porém, esses governos devem também reconhecer seus erros, como o de não cuidar da alfabetização política do povo, não valorizar o mercado interno e ficar demasiadamente na dependência do [capital] externo, além de não organizar as bases populares.

Interesses norte-americanos têm alguma influência na atual situação política do país?

Está dito acima. Os ianques farão de tudo para que o nosso continente volte a ser o quintal deles.

terça-feira, 26 de abril de 2016

A IDIOTICE "ESCLARECIDA" (OU O "ESCLARECIDO" IDIOTA): OU A CONTROVÉRSIA ENTRE O SABER E O NÃO SABER!

Divulgando de Nego Jorge Ghezo...






terça-feira, 26 de abril de 2016


DOSSIÊ DE HISTÓRIA – TEXTO 03 – (26abril2016) – 1º SEMESTRE 2016.



DOSSIÊ DE HISTÓRIA – TEXTO 03 – (26abril2016) – 1º SEMESTRE 2016.


Era março de 2015, e os protestos se davam no rastro da crise econômica, da desarticulação política das bases de sustentação do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff e da corrosão de sua credibilidade. Mas a caixa de Pandora da vida política nacional havia sido destampada dois anos antes, nas manifestações de 2013, que liberaram das conhecidas amarras cordiais os males do autoritarismo, do ódio, da intolerância, do preconceito e do desapreço à democracia.

Haveria na obra de Paulo Freire alguma mensagem capaz de autorizar tamanha indignação e reprovação?

“Doutrinador” é aquele que prega, instrui, incute em alguém uma crença, um ponto de vista ou um princípio sectário, ou seja, realiza uma transferência de conteúdos, de si para o objeto de sua doutrinação. Nada está mais distante do pensamento pedagógico de Paulo Freire do que isto. Ele repele com contundência qualquer procedimento doutrinador: “Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção”, escreveu em Pedagogia da autonomia.

Suas recomendações sobre os saberes necessários à prática educativa são claras. Desde logo, e sempre, a prática: “A educação como prática da liberdade, ao contrário daquela que é prática da dominação, implica na negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo, assim como também na negação do mundo como uma realidade ausente de homens”, ensinou em Pedagogia do oprimido. O homem em suas relações com o mundo. Este é o pressuposto de toda compreensão e de toda ação educativa capaz de promover a autonomia e a libertação das pessoas. Não é que o mundo seja necessariamente uma prisão. Ele até pode ser, e muitas vezes é. O que importa aqui é pôr o homem em seu contexto, rompendo o aparente curso natural das coisas e identificando o conjunto de suas relações. Colocadas em perspectiva, elas se reconfiguram e geram conhecimento histórico sobre si e sobre o mundo, para si e para o mundo.

Promover a tomada de consciência e a transformação do indivíduo em sujeito qualificado de sua própria história: eis a prática (práxis) educativa de Paulo Freire. Ele assim o diz, sobre si mesmo, em Educação como prática da liberdade: “Todo o empenho do Autor se fixou na busca desse homem-sujeito que, necessariamente, implicaria em uma sociedade também sujeito. Sempre lhe pareceu, dentro das condições históricas de sua sociedade, inadiável e indispensável uma ampla conscientização das massas brasileiras, através de uma educação que as colocasse numa postura de autorreflexão e de reflexão sobre o seu tempo e espaço. (...) Autorreflexão que as levará ao aprofundamento consequente de sua tomada de consciência e de que resultará sua inserção na História, não mais como espectadoras, mas como figurantes e autoras”.

Onde encontrar o ímpeto doutrinador em alguém que, em vez de pregar e impor, pergunta e escuta para compreender? Quando Paulo Freire retornou ao Brasil, em agosto de 1979, uma avalanche de repórteres cercou-o para saber sua opinião sobre a situação do país na época. Ele respondeu: “Vim para reaprender o Brasil e, enquanto estiver no processo de reaprendizagem, de reconhecimento do Brasil, não tenho muito a dizer. Tenho mais o que perguntar”. Sua atitude, antes de ser dogmática e taxativa, demonstra uma abertura irrestrita para o mundo, como aprendiz. 

A chave para compreendermos a acusação de “doutrinador marxista” contra Paulo Freire não está em sua obra. Encontra-se na mentalidade daqueles que produziram a mensagem, em sua compreensão estreita do que é educação e do que é ensinar. Essas pessoas acreditam piamente no mito da neutralidade da ação docente, segundo o qual o professor não tem cara, não tem lado, não toma partido, não pensa nem intervém de modo transformador na realidade social. Para elas, o professor deve estar unicamente comprometido com a sagrada missão de transmitir conteúdos anonimamente escolhidos, aparentemente desinteressados e oficialmente listados. Conteúdos supostamente eficazes, pragmáticos e destinados a aplacar a sanha competitiva por boas posições escolares e universitárias que tenham o condão de assegurar condições ideais de disputa nas escassas oportunidades de uma sociedade excludente. Na verdade, o acusador grita contra o espelho. É ele, e não Paulo Freire, quem prega a doutrinação. Qual? Diríamos, sem medo de errar: a “doutrinação bancária”, aquela que transfere “ao outro, tomado como paciente de seu pensar, a inteligibilidade das coisas, dos fatos, dos conceitos”.

O caminho da autonomia e da liberdade aberto por Freire não foi concebido para o educando como doação de uma inteligência superior que se compraz na realização daquilo que considera ser o bem, ou seja, como alguém (sujeito) que sabe o que é melhor para o outro (objeto). A grandeza do pensamento de Freire está na redução da distância em relação ao educando, na disponibilidade para escutá-lo em suas diferenças, na abertura de dialógica para a transformação recíproca: são dois sujeitos em troca aberta, franca e transformadora. Enfim, o caminho é partilhado com o educando: “Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém. (...) A autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser”.

A mentalidade conservadora dos acusadores rechaça a dimensão política da pedagogia concebida e posta em prática por Paulo Freire. “Ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica”, esclarece o educador. É por conta disso, provavelmente, que a mensagem no protesto decide ir além de uma doutrinação qualquer, e a qualifica: Freire estaria ligado a uma “doutrinação marxista”. Talvez sem saber, o acusador reedita uma crítica conservadora muito antiga contra Paulo Freire, baseada no fato de que seu trabalho é tão pedagógico como político. Mas é isso mesmo. Como afirmou Moacir Gadotti, o educador é político enquanto educador e o político é educador pelo próprio fato de ser político. Freire complementa: “seria uma ingenuidade reduzir todo o político ao pedagógico, assim como seria ingênuo fazer o contrário. (...) quando se descobre uma certa e possível especificidade do político, percebe-se também que essa especificidade não foi suficiente para proibir a presença do pedagógico nela. Quando se descobre por sua vez a especificidade do pedagógico, nota-se que não lhe é possível proibir a entrada do político”.

Quanto à alcunha de “marxista”, pretensamente desqualificadora, é preciso dizer que Paulo Freire jamais deixou de destacar o papel emancipatório atribuído por Karl Marx à ciência e à pesquisa. Além disso, juntamente com outros intelectuais marxistas, como Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho, o educador não só foi crítico de posições dogmáticas e mecanicistas, como reconheceu o valor universal da democracia e lutou intensamente para o seu desenvolvimento no Brasil. Sobre os confrontos em torno do seu legado, o próprio Marx certa vez disse: “O diabo os leve! O que sei é que eu não sou marxista”.

A pedagogia de Paulo Freire é radical, isto é, vem da e vai à raiz das coisas. Privilegia a cultura, os saberes e os valores dos educandos como ponto de partida e chegada de uma educação como prática da liberdade e da transformação. Quando lecionou a primeira aula em Angicos, no interior do Rio Grande do Norte, em 1963, Freire falou sobre o universo que cercava os estudantes: a leitura do mundo precede a leitura da palavra. No quadro negro, não escreveu “Ivo viu a uva”. Escreveu coisas oriundas daquele cotidiano popular, como “tijolo”. De imediato, o educando reconheceu-se naquela palavra e naquele contexto. Nada mais lhe era alheio: ele havia se tornado sujeito da aula. 

Esse encontro cultural acolheu e inseriu o educando, abrindo o caminho para a sua transformação. Por isso mesmo, é um ato político em seu sentido histórico: a discussão da polis em que vivemos e na qual queremos viver. Este talvez seja um dos pontos centrais da famosa citação do educador, replicada nas redes sociais como resposta dada pela Unesco ao cartaz levantado contra Paulo Freire: “Educação não transforma o mundo. Educação muda pessoas. Pessoas transformam o mundo”.

Paulo Cavalcante é professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e do Mestrado Profissional em Ensino de História em Rede Nacional – ProfHistória.
Yllan de Mattos é professor da Universidade Estadual Paulista e autor de A Inquisição Contestada (Mauad-X/Faperj, 2014).