terça-feira, 29 de maio de 2018

Justiça 1 por Roberto Aguiar


Divulgando...
Boa tarde povo!
4ª dia de Pensamento Inquieto! Continuamos com os textos anunciados na primeira postagem. Os mesmos serão divididos em várias postagens pra facilitar a leitura.
Obs.: Lembrando que temos uma novidade! Se você estiver sem tempo para ler o texto, a partir de agora disponibilizaremos um link para que você possa ouvir o texto sintetizado em MP3 (Haverá alguns sotaques visto que são sintetizadores estrangeiros)! O(s) Link(s) estará(ão) sempre entre o primeiro e o segundo parágrafo do texto postado.
Degustem!

CONTINUANDO...

            Então, para que o corpo aguentasse essa realidade nova, era preciso abstrair o corpo, tornar o Ser Humano abstrato. Nesse momento, aparece a visão moderna do Ser Humano com a qual se trabalha hoje. Ele é um indivíduo, um trabalhador livre, portador de uma vontade, e portador de uma vontade livre, de uma liberdade. Mas de uma liberdade muita estranha, que se traduz por um dos mais imbecis conceitos de liberdade que já se viu. “A minha liberdade termina onde começa a liberdade do Outro.” Essa definição de liberdade é a negação da liberdade. Se a minha liberdade termina onde começa a outra liberdade, isto depende da força, do espaço do outro. Então tenho menos liberdade quanto maior a força do outro. É um conceito que justifica a força; é um conceito que nega a possibilidade da fraternidade, da solidariedade. Os homens são essencialmente concorrentes. A minha liberdade é um problema de jogo de espaço de, “livre concorrência”, o que nunca foi.
            Ora, o resultado disso é que a Justiça passa a ser conceituada para esse Homem abstrato e não para o Homem concreto que nós observamos.


            A justiça passa a ser tratada como uma questão de partes. Vocês já perceberam, vocês que são tão ricos em termos de existências, projetos, trajetórias, que quando entram num processo se tornam parte, isso é autor, réu, requerente, requerido, embargante, embargado. As suas vidas não interessam. Vocês são abstrações em luta numa sintaxe processual. Isso é a quintessência dessa visão abstrata, que aparece na Primeira Revolução Industrial.
            Isso leva a alguns indicadores de concretização. Em Direito isso é chamado a “inserção no padrão napoleônico”, porque o código de Napoleão de 1810 é que praticamente fez o modelo jurídico e o modelo de visão do ser humano que concretizou os ideais burgueses que haviam sido construídos nas Revoluções de 1688, 1776 e 1779. O nosso Código Civil de 1916 é cópia servil do Código de Napoleão, isto é, Clóvis Bevilacqua, com toda a sua criatividade não fez muita coisa a não ser a adaptação do Código Civil de Napoleão de 1810.
            Nesse momento o que se percebe é que o Homem se torna a-histórico, abstrato, se torna um conceito, e nós fomos todos cegados para a concretude. Nós trabalhamos bem o conceito, mas não trabalhamos bem com o próprio real, com o próprio mundo do dado que nos assalta.
            Voltando à primeira história, falamos muito dos pobres menores abandonados, mas lavamos as mãos quando eventualmente colocamos no colo uma criança. Operamos bem com o abstrato e pessimamente com o concreto. Porque é assim que é preciso! Por quê? Porque no fundo se trabalharmos com a afirmação da corporeidade, negamos a produção em linha, negamos a possibilidade de Revolução Industrial, da disciplina no trabalho. Então, é preciso que o Homem se torne olhos e ouvidos. E o interessante: só olhos e ouvidos, porque os outros sentidos, não é muito bom colocarmos. O tato é sensual, o gosto é gula, e cheirar pega mal. Por isso nós somos olhos e ouvidos. Quando nós nos pensamos, nos vemos, nos ouvimos. Porque nós somos educados para os olhos e os ouvidos. E é assim que se faz um produtor eficaz. Inodoro, incolor, insípido e eficaz. Assim é que se faz, lembrando um outro livro sobre o que se está tratando, “A vigésima quinta hora”, assim é que se faz o cidadão bom. Conformado, acrítico e a serviço dos poderes dominantes. Porque ele nega aquilo que lhe é essencial a corporeidade.
            Como é que isso explode na contemporaneidade? Isso explode na contemporaneidade com coisas terríveis. Como trabalhamos com abstrações e como a tecnologia traz uma série de formas de estimulação, que a escola de Frankfurt chama de indústria cultural, transformamos o mundo em imagens cênicas. Em conversa com uma jornalista perguntei: vocês já perceberam que as coisas no Brasil acontecem como se fosse capítulos de uma novela? Vocês, sabem me dizer a cronologia dos escândalos do governo Collor? O que está acontecendo com aqueles envolvidos? Passou, já terminou. Quer dizer, acabou a novela do Homem das Bicicletas, depois vem a novela O Contrato do Uruguai e assim por diante. Termina. As coisas são cênicas, os espetáculos se esgotam em si mesmos numa negação do cênico grego, do cênico artístico. É o cênico operatório. Por outro lado, as teorias da contemporaneidade das metrópoles nos trazem outra questão seríssima. Elas dão o mundo como fragmentado. O mundo é fragmentado. O mundo, as pessoas. A massa é informe, é um buraco negro que praticamente absorve as informações mas não reflete. A tendência do mundo é a entropia. Nesse momento, percebemos que estamos vivendo uma fragmentação em termos de conceito, estamos vivendo uma sociedade onde o cênico, o televisivo, nesse sentido estrito, aparece; uma sociedade, onde o capitalismo e o socialismo estão em crise, e uma sociedade que, com essas características, desensibiliza as pessoas para os problemas que tem na imediatidade. É uma sociedade que é presa fácil dos mitos.
            Quais são os mitos que nós podemos perceber na sociedade hoje? Um: o mito do mercado. Isto é, nós temos um novo Deus, lembrando Hugo Assmann, que tem um livro: Luta dos Deuses. Hoje temos um novo Deus, o Deus Mercado. Ele, na sua sapiência infinita, vai resolver todos os problemas da Humanidade. Segundo aspecto dessa sociedade: uma sociedade eminentemente tanática, no sentido freudiano do termo, onde os valores da morte são muito mais importantes que os valores da vida. Isto é o real.
            Enquanto falamos aqui, estão se empilhando crianças mortas a cada dois minutos lá no canto. A cada dois minutos morre uma criança carente neste país. E ao final de uma palestra de 60 minutos, 30 crianças estão mortas lá no cantinho, e nós aqui lembrando e conversando. Terceiro: esse sentido de morte é tão grande que nós incorporamos a morte em termos conceituais. Por exemplo, cai um muro em Berlim e nós dizemos que o socialismo morreu. Como se a queda de um muro tivesse resolvido os problemas de classe no país. Caiu o muro de Berlim e nesse momento um peru assado entrou no sertão do Cariri para todos aqueles que lá moram. Cai o muro de Berlim, e nesse momento todos aqueles que moram nas palafitas recebem empregos na General Motors. É o mito da morte: a morte do socialismo. Outros, como Fukuyama, diz que a História morreu. Chegou a liberalismo, que é a parusia social, é o final dos tempos. Todos um dia vão chegar a essa liberdade de mercado que é o final dos tempos. Então não tem mais História, numa interpretação, diga-se de passagem, numa leitura imbecil de Hegel. Perdoem-me alguns que acham que ele é sofisticado na análise de Hegel, eu acho que deveria ir para Hegel novamente, porque é uma leitura completamente deformada.
            Alguns teólogos americanos, de igrejas, proclamaram a morte de Deus, Deus também morreu, vamos fazer uma teologia sem Deus. Uma contradição!
            E finalmente, os pensadores franceses da contemporaneidade que recebeu o rótulo de pós-moderna dizem: as utopias morreram. Quer dizer, nos sacam até a possibilidade de sonhar.
            Ora, é nesse momento então, que olhando esse tema, precisamos pensar a Justiça como uma volta à concretude. A concretude do corpo, da participação, de perceber que o Homem está referenciado a uma totalidade, não só uma totalidade como uma certa leitura mecanicista, mas uma totalidade bem mais ampla. E segundo: que pensar Justiça, nesse eixo, significa pensar na alteridade concreta como fundamento da Justiça. Pensar que a Justiça só se concretiza na historicidade. Não uma história no sentido do progresso, aquela história sem volta, mas talvez retomando a pluralidade histórica. Perceber que a Justiça está em função da contradição. Isto é, a categoria contradição está ínsita na questão Justiça. Não é possível pensar Justiça numa sociedade que no fundo tem padrões supra-sociais que interferem numa sociedade harmônica. Não. A Justiça é a superação das contradições circunstanciais, pessoais, coletivas, que a sociedade apresenta e o cidadão, em termos de opções éticas, tem que resolver.
            E, finalmente, e perceber que os valores que embasam a Justiça são os valores sociais. Os valores são construções sociais históricas, no sentido de aperfeiçoamento das relações entre os Homens. Aliás, é interessante que certas palavras são hoje muito mal-faladas. Falar de amor, de fraternidade, de felicidade, pega mal. Não é racional. Nós sacamos o fundamental porque não é racional. Clivamos o mundo. O racional não vai tratar de felicidade, onde já se viu? Felicidade é um conceito. A felicidade do trabalhador é a tecnologia, mas se não trabalharmos com outros conceitos trabalharemos com números. O que é o trabalhador feliz, perante uma sociedade que se tecnologiza (para usar o neologismo)? Esse é um eixo que eu queria abordar.
            Um segundo eixo que eu queria colocar é o eixo da planetarização. Isto é, percebemos que o conceito de Justiça, antes, era um conceito individual. Se tomarmos os romanos, os gregos, ou se pegarmos até mesmo o Código de Hamurabi, que viveu na Mesopotâmia há um bom tempo, perceberemos que a Justiça é um problema interpartes. É uma justiça que chamamos de comutativa. Quer dizer, eu vendo e tenho que vender pelo justo preço, e o comprador tem que me pagar, mas pagar pelo preço que eu pedi. É o equilíbrio, entre partes. E esse sentido foi sendo levado por muito tempo na História. E o século XIX, pelas suas lutas, e pelo assumir da historicidade, da participação do Homem em grupos sociais, em classes sociais, pela criação, pela descoberta ou pela redescoberta da dialética, é que vai trazer uma outra dimensão da Justiça, que é a internacionalização da Justiça. A Justiça sai do individual, ou do império ou do nacional, para se tornar um problema internacional. Quando Marx diz: “proletariado do mundo, uni-vos”; ele está procurando uma Justiça que não se cinja a países, se cinja a um problema que passava internacionalmente pelo Planeta.
            Mas a questão internacional ainda é pouco. Isso porque, hoje, os problemas que a humanidade vive não são problemas que dependem apenas de governos internacionais. Os problemas são planetários! Relembrando os exemplos, o problema nuclear não é um problema internacional. É um problema planetário, é um problema da espécie, do planeta. Isto é, pela primeira vez o homem chegou a um momento em que, talvez na história biológica, é a primeira espécie que pode ser suicida. É se auto-destruir com seus próprios instrumentos. Não se conhece espécies suicidas. Mesmo alguns biólogos dizem que os Lemingues se suicidam nas tundras do Canadá, mas isso aí é para regular a população, porque senão as línquens não serão suficientes para alimentá-los. Nós, não. Nós estamos na primeira possibilidade.
            A própria tecnologia traz esses problemas de meio ambiente, e esses problemas não se cingem a países, mas ao planeta. E mais, essa questão de Justiça começa a invadir até outros aspectos. Se eu disser, que nós precisamos, eventualmente, pensar numa Justiça cósmica, vão dizer que isso é alucinação de uma pessoa que andou lendo demais. Mas, o próprio caminhar da humanidade indica isso, as descobertas sobre a estrutura molecular do Homem, o próprio sentido de que o homem participa do tecido do Universo, ele é parte disso! As contribuições da mecânica quântica, da astrofísica, para dizer algumas, levam a pensarmos que talvez o Homem tenha uma característica que precisamos destacar. O Homem é inesperado. O homem é um ser estranho. Comprimido entre dois mistérios do seu nascimento e morte e com grande parte da sua existência trabalhando no invisível. As contribuições de Freud, de Jung, mostram que existe uma camada de indizível, encoberta, que nós mesmos não explicamos. Então no homem há um indizível interno e um mistério na sua existência, e isso talvez venha a mexer com nova ordem de problemas.
            Por isso diria: há necessidade de nós refletirmos a Justiça numa amplitude bem maior. Não somente na sua incidência, como na necessária reconceituação da relação dos homens, entre si e com o seu meio.
            Um outro eixo, que acho importante levantar, é o da paixão perdida. Nos séculos XVII, XIX, a primeira Revolução Industrial matou a paixão. Matou-a operatoriamente, para efeitos de eficácia. E é a paixão que faz as grandes transformações da história. Nunca se viu alguém que não fosse apaixonado fazendo alguma transformação que fosse razoável no mundo. Se Mozart não fosse apaixonado pela música, se Einstain não fosse apaixonado pelo Universo, se Marx não fosse apaixonado pelo outro, pelos explorados, nada teria acontecido! Nem teríamos as obras de Mozart, nem teríamos a grande revolução científica, nem teríamos as transformações sociais.
            E é surpreendente que essa paixão, que faz as coisas andarem, praticamente foi dada como algo maléfico, perigoso. Então, amor é bom, paixão é destrutiva. O amor constrói, lembrando aí a época da ditadura; Dom e Ravel, grandes teóricos! A paixão destrói! O amor plenifica. A paixão fragmenta. Por isso dizemos não sou apaixonado pela minha mulher, tenho um grande amor por ela. Porque paixão é aquele negócio avassalador, que passa um trator em cima e esmigalha. Isso é que nos é passado!
            Em todas essas épocas até o século XIX, quando surge a produção em linha e Taylor, em todas essas épocas, a paixão era algo do ser humano. A partir daí, percebeu-se que, na produção em linha, o apaixonado não trabalha bem. Mas é óbvio. Vocês já pensaram um sujeito apaixonado por sua companheira, na cama com ela, e às seis horas da manhã toda o despertador pera ele entrar na fresa, ou no torno? Ele, certamente, chutará, com a maior legitimidade, o seu despertador. E criará uma lacuna na linha de produção. Então, é preciso que o homem mate a paixão, se reconceitue como um ser amoroso, e nunca apaixonado.
            E com isso o que acontece, no âmbito específico que nós estamos tratando aqui? Não há mais a paixão pela Justiça. A Justiça é um conceito, é um jogo, é uma relação, é uma geometria, mas a Justiça não é paixão! Nós perdemos a possibilidade do sentimento da Justiça, da paixão pela Justiça. E é uma paixão envolvente, porque é uma paixão teórico-prática. É uma paixão de reflexão e ação. De valores e ações.
            Então, quando se perde a paixão pela Justiça, nesse momento a sociedade se abre para essa dimensão completamente aética que nós vivemos. Nós vivemos numa sociedade, hoje, onde não há parâmetros para coisa alguma. Tudo é válido, desde que dê lucro.
CONTINUA NA PRÓXIMA QUARTA...
Obs.: Os negritos itálicos são os destaques do texto original; os [  ], os negritos e os negritos vermelhos são destaques nossos.


quarta-feira, 23 de maio de 2018

Justiça por Roberto Aguiar


Divulgando...
Boa tarde povo!
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Obs.: Lembrando que temos uma novidade! Se você estiver sem tempo para ler o texto, a partir de agora disponibilizaremos um link para que você possa ouvir o texto sintetizado em MP3 (Haverá alguns sotaques visto que são sintetizadores estrangeiros)! O(s) Link(s) estará(ão) sempre entre o primeiro e o segundo parágrafo do texto postado.
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GUETO DO PENSAMENTO INQUIETO
JUSTIÇA
ROBERTO A. R. DE AGUIAR – Professor Titular e Diretor do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM) da Universidade de Brasília
O Pensamento Inquieto (Curso de Extensão Universitária a Distância). Organização de Clodomir de Souza Ferreira, João Antonio de Lima Esteves e Laura Maria Coutinho – Brasília: CEAD/Editora Universidade de Brasília, 1993. (pp. 65 a 78).
QUESTÕES PARA RELFEXÃO
Não há mais paixão pela justiça. A justiça é um conceito, é um jogo, uma relação abstrata. Por isso a sociedade assume essa dimensão aética em que vivemos. Que valores priorizamos em nossa concepção de justiça? O professor Roberto Aguiar assinala que, no Código Penal, a maioria dos delitos classificados se referem a crimes contra o patrimônio; os delitos contra a pessoa ocupam apenas três capítulos. Que implicações se pode tirar de uma justiça que valoriza mais as coisas do que os seres humanos? Como concretizar práticas sociais que privilegiem os valores da vida? O que é justo para cada um de nós, e como agimos para a concretização dessa justiça na História? Estas são algumas questões às quais ninguém pode ficar indiferente.
            Antes de começar a falar sobre a Justiça, preciso contar dois fatos, para que todos sintam que alguma coisa anda mal a respeito dessa questão.
            Certa vez fiz uma palestra numa capital de estado, aqui no Brasil, e a palestra era justamente sobre a questão de Direitos Humanos. E todos com uma visão “muito” avançada, progressista, e as divergências até que eram poucas.


            Após a conferência, saí à porta e tinha uma menina, que a juridiscidade chama de menor. Menor é o filho Fe pessoa pobre. Nunca falamos assim: tenho um menor em casa, que é o meu filho. Ela tava vendendo balas. Era uma menina de oito anos, e eu a pus no colo, para conversar com ela. Depois de conversarmos, trocamos ideias. Não fiz anda por ela, porque como acontece, a gente acaba fazendo só algo periférico. E quando pus aquela criança no chão, um dos progressistas me disse: o senhor quer lavar as mãos? Aquele que estava com discurso altamente avançado!
            Cito outra questão. A televisão , o Roberto Marinho, toda hora coloca imagens da Somália com aquelas crianças marginalizadas, quase mortas, miseráveis. E olhamos as estatísticas oficiais, chanceladas até mesmo pelo Tribunal de Contas da União, que dizem que temos 33 milhões de miseráveis. Isso é quatro vezes a população da Somália. Então, me parece, á primeira vista, para entrar na questão da Justiça, é que algo nos deixou completamente insensíveis para a concretude que está embaixo de nossos narizes.
            Somos muito hábeis em trabalhar por mediações. Mediações do texto legal, das tabelas, estatísticas. Lembrando até aquela velha colocação de Marx, de que somos muito bons em reificar os homens e humanizar as coisas. E isso tem uma história e isso repercute profundamente ma questão da justiça. Isto porque se olharmos as conceituações hoje vigentes de Justiça, elas são frases retóricas sem qualquer tipo de sentido. Se olharmos os cursos jurídicos ou o sentido de Justiça do senso comum, que é passado até mesmo pelos meios de comunicação, são frases que não têm sentido algum. E que por não terem sentido algum podem ser preenchidas com qualquer conteúdo. Então, por exemplo, uma velha frase de Ulpiano, do Direito Romano e que todo mundo acha nos cursos jurídicos “isso é uma maravilha”! – ele se pergunta: o que é Justiça? É viver honestamente, não lesar o outro e dar a cada um o que é seu. Essa definição é tão, definitiva que levou certos juristas a dizerem: realmente existe um direito natural.
            Este sentido de Justiça transcende a todas as sociedade. Isto é real. Só que há um pequeno problema prático nisso. Viver honestamente segundo que valor? Não lesar o outro: quem é o outro? Dar a cada um o que é seu: qual é o seu de cada um? Isto é, são definições que escondem, sonegam a questão central que há por trás. E é por isso que Pinochet no Chile; Hitler, na Alemanha; Noriega, no Panamá; Somoza, na Nicarágua, todos davam o seu de cada um, não lesaram o outro e viviam honestamente. Depende dos padrões de um outro tipo de visão e um outro tipo de prática para tentar perceber a questão da Justiça.
            Por outro lado, voltando aos mesmos romanos que deram essa definição de Justiça, eles já dão indicadores, principalmente a partir de dois autores conhecidíssimos por todos que são: Cícero e César.
            Quando eles analisam e usam o vocábulo Justiça, eles dão alguns indicadores dos seus sentidos. A palavra Justitia, em latim, tem um sentido de justiça, de equidade. Mas, também tem um sentido de direito. Então, nesse momento, vemos um casamento entre a questão jurídica e a questão do valor Justiça.
            Mas ao mesmo tempo os romanos, que eram muito ricos em termos vocabulares e simbólicos, eles tinham uma outra palavra Iussum, que quer dizer: comando. Então, a palavra Juridicidade, se de um lado está ligada a direito, a equidade, de outro está ligada a ordem, comando, poder.
            E ainda temos a visão da palavra Justus, que quer dizer legítimo.
            Nesse momento os próprios romanos, Cícero e César, trouxeram nas suas interpretações quatro pontas: a Justiça é Equidade; a Justiça é Direito; a Justiça é Legitimidade, e a Justiça é Poder.
            Então me parece que olhando a questão da Justiça em termos conceituais, podemos perceber que precisamos trabalhar com o conceito de Justiça, com o sentimento de Justiça, com práticas de Justiça e com perspectivas utópicas de Justiça. Se não tentarmos fazer esse arco, vamos trabalhar na mera abstração.
            Tentarei aqui, fazer algumas considerações, a partir de determinados eixos de reflexão.
            O primeiro grande eixo, chamei até arbitrariamente, de Eixo da Concretização. O que significa isso? Significa que, se olharmos essa sociedade com aquelas duas histórias rápidas com as quais iniciei esta discussão, vamos perceber que no decorrer da história, desembocamos num conceito de humano que é um conceito completamente abstrato, alijado, exilado da concretude.
            Se tomarmos as sociedades indígenas, que uns dizem que são sem Estado, e outros dizem que são sociedades contra o Estado, isto é, eles são tão sutis que urdem normas para que nunca a minoria empalme o poder.
            Voltando à questão da modernidade, de achar que o índio é atrasado e primitivo, talvez o índio seja muito mais sutil, ele estrutura uma sociedade onde nunca o chefe comande, onde o poder político sempre está situado na coletividade e dá ao chefe (aí a sofisticação jurídica) a função de ensinar os fundamentos da sociabilidade do grupo, e dentre esses fundamentos está toda uma estrutura de História, de contos onde o chefe sempre diz: eu não comando. E toda vez que o chefe comandar esse chefe é tirado. E assim, por exemplo, surge a famosa lenda que todos já conhecemos quando éramos crianças, dos Kamaiurás, dos Waimiri-Atroari, dos Ianomamis, a lenda da origem da casca da tartaruga. A tartaruga era um animal muito rápido, muito inteligente e aí ela começou a explorar o trabalho dos outros bichos. E como o contar indígena é interessante! Então, de cada um ele vai contando: o que tiraram da onça, do tamanduá, etc. Então fizeram uma assembleia e resolveram parar com isso: pedir ao macaco, à noite, quando a tartaruga estivesse dormindo, subisse na mais alta das árvores e jogasse a tartaruga lá embaixo, para matá-la. Mas ela não morreu. Ficou com o casco todo trincado, e passou a andar muito vagarosamente.
            Quando o chefe diz isso, como obrigação, ele está dizendo: toda vez que alguém quiser dominar vocês subam no alto da árvore e joguem-no lá embaixo, isto é, defenestrem-no. É uma estrutura muito complexa. Então o que há nisso? Há o sentido de pertinência anímica. O Ser Humano tem as relações de igualdade, as suas relações de reconhecimento, baseadas no fato de pertencerem ao mundo espiritualizado. Todas as coisas têm espírito.
            Se olharmos a Antiguidade Clássica, vamos perceber um outro ponto. A Antiguidade Clássica Greco-romana tem uma perspectiva de um Universo pronto. Que aliás, a Idade Média também, em sua primeira fase, vai reproduzir.
            Neste Universo pronto, o papel do Homem no Universo ptolomaico, o papel do Homem qual é? É contemplar a glória de Deus, no caso do romano. E, no caso grego, é contemplar a ordem do Cosmos. Nem em Deus falavam, porque Deus já era menor, era um demiurgo.
            Ora, então o que acontecia? O que era Justiça, para esse tipo de concepção? Era aquilo que os gregos faziam a diferença entre Nomos e Logos. Logos é a Lei Universal que rege aquela estrutura fixa, e essa lei é infalível: a Lei Universal é definitiva, é eterna, ela realiza a natureza das coisas. Daí a palavra aperfeiçoa, que quer dizer, torna ato aquilo que é potência. E o que é Nomos? É a imperfeita Lei Humana, traduzida pelos costumes, pelas relações sociais e pelo Direito. Qual é a Justiça? A Justiça é a adequação da Lei Imperfeita (Nomos, feita pelo Homem) à Lei Perfeita do Logos, isto é, o padrão de Justiça era a adequação da lei, do costume, do justo à uma ordem Universal pré-fixada. De qualquer maneira, o que se sentia no Universo Greco-romano é que as pessoas se sentiam participes. Os gregos, em determinado período histórico, das suas cidades-Estado e os romanos, de seu império. Tanto é que o grande trabalho político dos imperadores romanos era a extensão da cidadania aos colonizados. Tanto é que termina com Caracala, aliás famoso na História porque até hoje sobrevivem as famosas termas de Caracala. Ele dá o último passo: estende a todos os colonizados a cidadania romana. Então, eles se sentiam romanos, com direitos romanos. Podemos perceber isso na Bíblia, nos Evangelhos. Paulo, na hora de morrer, não morreu como judeu, não foi crucificado. Ele avocou para si o seu direito de morrer como cidadão romano. Paulo não foi crucificado. Então, se percebe a pertinência ao Império.
            Na Idade Média feudal, e depois na Idade Média de ascensão do mercantilismo, vamos sentir uma coisa. Quem estava dentro do feudo, mesmo que servo da gleba, mesmo que inferior, era partícipe de uma Ordem Divina e de uma Ordem Hierarquizada Vertical. Quando o mercantilismo aparece, e os burgos começam a urdir aquela mudança econômica, onde o valor terra é substituído pelo valor dinheiro e o valor lucro passa a superar o valor troca, o cidadão se sente partícipe do burgo. Antes da feira, depois da vila, depois do burgo, que é a estrutura jurídica daquela nova forma econômica. De qualquer maneira nessas diversas formas de organização social, o justo era previsível. O justo traduzia uma certa concepção do mundo, e as pessoas tinham até mesmo uma certa consciência de sua posição mesmo que inferior.
            E de qualquer maneira, é preciso ainda relembrarmos que em todas elas, uma coisa ainda não tinha sido sacada das pessoas. Por mais injustas que fossem as organizações sociais, um aspecto não tinha sido retirado das pessoas: o uso da sua corporeidade. O corpo do cidadão romano, do cidadão ateniense, o corpo do servo da gleba feudal ou o corpo do burguês emergente mercantil, eram corpos respeitados, que tinham liberdade. Só pra dar um pequeno exemplo, vamos lembrar que mesmo com a força da igreja, o casamento religioso só começa a aparecer a partir do século XVI. Antes, as pessoas se casavam com compromisso recíproco, e como a Igreja era forte, nas escadarias da Igreja. Nunca um padre ia lá, colocar seu dedo para dizer como deveriam usar o corpo.
            A partir do século XVIII, surge uma forma produtiva, isto é, começa a denominada Primeira Revolução Industrial, fim do século XVIII, início do século XIX. E nesse momento era preciso que o Homem se reconceituasse, para aguentar uma nova forma produtiva onde ele não teria mais a sua corporeidade. O que acontece? Primeiro: o Ser Humano vai trabalhar num lugar onde ele já não é mais dono nem da máquina, nem do produto, nem do estoque. Não haveria mais o que havia, inclusive, no século XVII, de alguém ir trabalhar com outro e levar a sua ferramenta. Não, nem mais a ferramenta era sua. É nesse momento em que aparecem os perigos das pessoas que vão trabalhar num lugar onde elas não são donas de nada: o perigo de fazerem greve, o perigo de destruírem a máquina, o perigo de furtarem o estoque ou furtarem o produto. É nesse momento que o corpo humano vai sofrer as mais violentas formas de agressão. Lembro-me apenas, em termos práticos da minha área, de uma fábrica em São Paulo da Volkswagen, que era um lugar perigosíssimo porque era uma linha de montagem, onde o pessoal fazia uma média de 20 mil movimentos repetitivos em cada jornada de oito horas, e eles costumavam trabalhar dez, com duas extras. Era um lugar de alta periculosidade, de alta insalubridade. Então, aquele corpo forçado a se repetir ad nausean, para uma produção para a qual o corpo não está preparado. Fisiologicamente ele não está preparado. Quanto mais se repete o movimento, mais possibilidade se tem de acabar falhando no movimento. Tanto é que nas máquinas repetitivas é onde se tem acidentes de trabalhos mais frequentes.
CONTINUA NA PRÓXIMA QUARTA...
Obs.: Os negritos itálicos são os destaques do texto original; os [  ], os negritos e os negritos vermelhos são destaques nossos.



"Pobre 'esclarecido' que se diz anticomunismo ou anticomunista é como o cão que volta pra lamber a mão do dono depois de levar um pontapé do mesmo!"


quarta-feira, 16 de maio de 2018

Marx por Carlos Nelson Coutinho 2


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CONTINUANDO...

            E também, com Gramsci, se criou algo que já vinha de antes e que Kautsky já havia chamado de ‘estratégia da derrubada’ e ‘estratégia do assédio’; que dizer, a derrubada seria esse choque frontal, o assédio seria esse processo de guerra de posição. Portanto, antes de Gramsci, mas sobretudo com ele, criou-se um novo paradigma, um novo conceito marxista de revolução, que me parece não só o mais adequado ao mundo contemporâneo, o mais exequível, mas também aquele que nos interessa mais, porque é aquele em que mais facilmente podemos preservar relações participativas do tipo democrático.


            Quer dizer, as revoluções que se dão através da violência, embora em muitos casos sejam necessárias (não vou imaginar que fosse possível derrubar a ditadura de Somoza na Nicarágua através da guerra de posição, porque não havia posições a serem conquistadas, ele não era dono apenas do Estado, mas da economia do país; dificilmente ali poderia ter sido diferente), certamente implicam riscos de regressão que são muito maiores do que no caso da construção de uma sociedade através da luta pela hegemonia e pelo consenso. Muito bem, o socialismo hoje implica a necessidade de pensarmos uma estratégia, que eu chamaria de reformista-revolucionária, para a construção de uma nova ordem social.
            E, ao falar de reformismo revolucionário, inspirando-me numa velha ideia de André Gorz, depois usada por Lucien Goldmann, ao propor uma estratégia reformista revolucionária, estou propondo uma terceira via entre os dois modelos de revolução ou de transformação, mais precisamente, que dominaram aqueles dois troncos do movimento operário a que me referi antes. Quer dizer, por um lado acho que devemos abandonar a ruptura revolucionária, a ideia de que só há revolução, que só há transformação, quando se toma o palácio, no caso brasileiro o Palácio do Planalto, no caso de 1917, o Palácio do Inverno,e, a partir desse momento, se começa a introduzir transformações radicais na sociedade. Acho que essa concepção de revolução está superada, pelo menos nos países onde há um razoável grau de desenvolvimento da sociedade civil. Isso vale para a maioria dos países da América Latina de hoje. Por outro lado, essa proposta supera também o modelo de transformação social-democrata. Veja bem, não critico a social-democracia por ela ser reformista, critico-a por ser insuficientemente reformista.
            E acho que a ideia de reforma como momento de transformação social, ou melhor, até como momento de revolução, é uma ideia que está presente no próprio Marx. Quando se conquistou, na Inglaterra, pela primeira vez, a fixação legal da jornada de trabalho (se não me falha a memória em dez horas), Marx disse o seguinte: “essa foi a primeira vitória da economia política do trabalho sobre a economia política do capital”. Ora, se Marx reconhece que uma reforma desse tipo é uma vitória da economia política do trabalho, então Marx autorizou, claramente, do ponto de vista teórico, a luta por reformas.
            Imaginem quantas vitórias da economia política da classe trabalhadora foram conquistadas, por exemplo, no welfare state: direito de aposentadoria, direito de férias, enfim, inúmeros direitos que certamente ainda não dão ao trabalhador uma plena cidadania social, mas que assegura-lhe inúmeras vantagens, conquistadas ainda no interior do capitalismo. A social-democracia captou essa possibilidade de uma luta por reformas de conquistas efetivas, mas a meu ver, peca porque toda vez que a dinâmica das reformas entra em conflito com a lógica do capital, e isso se dá rapidamente, porque o Estado capitalista não é capaz de financiar plenamente os direitos sociais conquistados, há uma crise fiscal. Então toda vez que ocorre esse choque entre o aprofundamento da cidadania e o Estado capitalista, a lógica do capital, a social-democracia tem, em geral, recuado e passado a gerir a lógica do capital.
            Então, o reformismo deles é um reformismo que eu chamaria fraco, é um reformismo, no máximo, ‘melhorista’. Dizem: vamos melhorar o capitalismo, e, à medida que as reformas se chocam com o capitalismo, eles em vez de ficarem com as reformas, ficam com o capitalismo. A minha ideia é que a estratégia socialista revolucionária possível hoje, é aquela que, utilizando as reformas como instrumento fundamental da luta política, tenha clara consciência de que essas reformas devem ser aprofundadas no sentido da superação da lógica do capital, no sentido da transformação do investimento social e não em algo que vise essencialmente ao lucro privado, mas em algo que vise essencialmente ao bem-estar da sociedade. Reformas, portanto, que devem ser feitas tanto na ordem econômica, no sentido de controlar socialmente a produção econômica, mas também na ordem política, no sentido de transformar profundamente o Estado e fazer dele algo permanentemente submetido ao controle social.
            Acho que essa nova proposta socialista de construção de uma nova ordem social deve abandonar uma posição que marcou tanto a vertente bolchevique-comunista quanto a vertente social-democrata, que é um viés profundamente estatísta; uma identificação seguramente equivocada entre estatal e público. Tanto a social-democracia pensou as suas reformas como algo a ser realizado através da burocracia do Estado, como as sociedades do Leste europeu conceberam a socialização da propriedade como a estatização da propriedade e, na prática, o controle dessa propriedade estatal pela burocracia estatal. Não vou discutir aqui se isso chegou a constituir uma classe, mas que certamente explorava o conjunto da sociedade porque tinha privilégios, porque detinha o controle da propriedade estatal e, nessa medida, impediu que se realizasse uma efetiva socialização da economia.
            Devemos, hoje, conceber um socialismo que não confunda e que não identifique o público com o estatal. Acho que deverá haver, é claro, algumas formas de propriedade do tipo estatal: bancos, etc. Mas devemos ser criativos para imaginar formas de controle público da economia que não necessariamente sejam formas de propriedade estatal: cooperativas, pequenas empresas integrando-se em cooperativas maiores, enfim, mecanismos que assegurem a propriedade do público sobre o privado numa economia que não hesitaria em chamar de economia mista. Acho que há setores que continuarão como propriedade privada, haverá um razoável grau de mercado, submetido, certamente, a um planejamento global. Mas eliminar o mercado por decreto revelou-se inviável. Então, numa economia mista, onde haja um integração dinâmica entre planejamento e mercado, é possível fazer com que os interesses públicos sejam prioritários sobre os interesses privados e, portanto, subordinar a lógica do capital, onde ela ainda existir, a uma lógica nova, que vise ao bem-estar da sociedade.
            Na economia parece-me que são essas as reformas que devem ser feitas no sentido de transcender a ordem social capitalista. Na política, por outro lado, acho que devemos inventar mecanismos que cada vez mais coloquem a sociedade civil controlando o aparelho de Estado até o ponto de absorver os mecanismos burocráticos do Estado nos organismos hegemônicos e autogeridos da sociedade civil.
            E tendemos a esquecer que uma utopia fundamental de Marx (no sentido positivo da palavra utopia) é o fim do Estado. O ideia de Marx é que o socialismo era uma etapa transitória para a realização do comunismo, onde haveria o fim do Estado. E lembro-me que Stalin, com seu enorme cinismo, dizia assim: “dialeticamente, para que o Estado desapareça, tem de se fortalecer cada vez mais; quanto mais forte ele for, mais perto estará de desaparecer”. E, com isso, criou-se aquela monstruosidade que conhecemos. Então, esse viés estatista não é a posição de Marx. Nessa medida, deve-se recuperar a noção do fim do Estado, talvez com um pouco mais de realismo do que Marx, não com a ideia de que o Estado possa se extinguir inteiramente, mas certamente com a ideia de que ele pode ser bastante enfraquecido e controlado progressivamente pela sociedade civil.
            Alguém poderia dizer que estamos defendendo o neoliberalismo que também fala em enfraquecer o Estado. Não, porque o neoliberalismo pretende enfraquecer o Estado para pôr no seu lugar o mercado, e o mercado com todas as suas terríveis injustiças, um mercado que, no Brasil, exclui de si mesmo quase dois terços da população. Se o neo-liberalismo, nos países desenvolvidos, é a sociedade dos dois terços, quer dizer, dois terços vivem mais ou menos bem e um terço vive miseravelmente, no Brasil é a sociedade do um quarto: três vivem miseravelmente. Então, não se trata de enfraquecer o Estado para pôr em seu lugar o mercado, mas de enfraquecer o Estado para pôr em seu lugar a sociedade civil. Devemos conceber um caminho democrático e socialista onde a sociedade civil cresça cada vez mais e se torne cada vez mais o sujeito da construção da cidadania e das políticas sociais. Não se deve entregar sua realização à burocracia estatal, mas ter a sociedade civil como gestora e implementadora da política educacional, da política de saúde, etc.
            Nós, socialistas, nós, de esquerda, vivemos hoje num mundo onde não é difícil constatar a presença ainda hegemônica das correntes neoliberais. Vejam bem, uma presença hegemônica aparentemente tão forte que um filósofo dublê de funcionário do Departamento de Estado norte-americano, Francis Fukuyama, chegou a escrever um livro, inteligente, para defender a ideia de que chegamos ao fim da história. Quer dizer, a democracia liberal, entendida como liberalismo político e (de) mercado é o fim da história: quem ainda tem história é quem ainda não chegou lá. Por exemplo, nós ainda temos história, então vamos passar, até chegar lá, direitinho por aquele modelo europeu e tal...
            Lembro-me sempre que o Hitler dizia que o Terceiro Reich ia durar mi anos; durou doze. Então, tenho a impressão de que também esse reino milenar, ou eterno, do mercado liberal, não vai durar tanto tempo assim.
            Como vocês sabem, o conjunto dos países do Primeiro Mundo vive hoje uma profunda recessão econômica. Não é só o socialismo que está em crise, o capitalismo continua a manifestar traços da sua crise já secular. Como é possível resolver, através de políticas neoliberais a imensa disparidade entre o Norte e o Sul do mundo? Esse modelo neoliberal só faz acentuar as desigualdades sociais, e, vejam bem, um fenômeno como a Somália atual é resultado do capitalismo, não da falta de capitalismo, como alguns neoliberais têm tentado nos vender ‘o peixe’, Dizem que a África está assim porque não tem capitalismo, quando o capitalismo chegar lá, resolve. Qual o mal do Brasil é a falta de capitalismo, houve até quem propusesse um choque de capitalismo.
            Não, a miséria brasileira e a miséria africana são claramente resultado do capitalismo, que não é um fenômeno nacional, e sim um fenômeno internacional. Então, o capitalismo também está em crise e o neoliberalismo apresenta hoje em dia traços de uma profunda crise como modelo de legitimação. É impossível conviver com fenômenos como a Somália, é impossível conviver com a Baixada Fluminense, onde a situação ainda não é tão grave quanto a situação da Somália. O neoliberalismo começa, portanto, a apresentar sintomas de que sua hegemonia não será longa. Mesmo no Brasil, onde em alguns momentos a política do Collor chegou a demonstrar que duraria, acho que, também no Brasil, ele começa a revelar seus limites.
Às vezes, nos preocupamos um pouco com a bizarrice do presidente Itamar Franco. Mas, o fato real é que o Itamar tem posto o dedo em alguns problemas importantes, demonstrando claramente que esse negócio de que modernidade é ir para o Primeiro Mundo, não é nada; modernidade é resolver as condições de miséria do povo brasileiro, sem o que não tem modernidade nesse país. Modernidade é importar o BMW? Claro que não. Lembro-me, fui do PCB muitos anos, que todo documento do PCB sempre começava pela parte internacional e tinha uma frase inicial assim: “O socialismo avança no mundo.” Podia estar acontecendo coisas trágicas para o socialismo, como o conflito sino-soviético, a intervenção na Tcheco-Eslováquia, mas o socialismo estava sempre avançando.
            O reino do neoliberalismo começa a revelar cisões, fraturas, começa a demonstrar que como o Reich dos mil anos do Hitler não vai demorar tanto assim, e formas de inquietação começam a se manifestar na Europa e em outros países do mundo, indicando uma possibilidade de uma retomada da esquerda.
            O que será essa nova esquerda? Não sabemos ainda. Certamente ela não será uma esquerda apenas proletária. E continua achando que a classe fabril tem uma centralidade na luta pelas transformações sociais, socialista, mas certamente não é mais o único sujeito dessas transformações. Temos que conceber uma esquerda que se abra para demandas que provêm de inúmeros outros segmentos da sociedade e demandas que, implicando o aprofundamento da cidadania, certamente têm uma lógica própria que se chocará com a lógica do capital. Estou plenamente convencido de que a expansão da cidadania é incompatível com a permanência do capitalismo. Se fosse compatível, acho que deveríamos abandonar o socialismo.
            Se pudermos conseguir todos os direitos sociais e políticos que nos propomos hoje, e que a humanidade certamente vai propor daqui pra frente, (e os direitos não acabam hoje, outros direitos vão surgir), e ainda, se todo esse volume de direitos for compatível com o capitalismo, com a lógica do capital, então certamente o socialismo não tem futuro. Acho que não, pois o socialismo é justamente a possibilidade de realizar plenamente essa demandas sociais, e pelo menos durante um certo tempo na história dar também segmento às novas demandas emergentes que certamente se colocarão às gerações futuras. Também o socialismo não é eterno,e nós não sabemos o que vem depois, mas certamente ele é, e insisto nisso, hoje é preciso insistir enfaticamente, uma ordem social capaz de responder às contradições e demandas do mundo contemporâneo. Nesse sentido, acho que a necessidade do socialismo brota das próprias contradições do capitalismo. E isso nos dá razões de esperança e de um otimismo pelo menos moderado.
Obs.: Os negritos itálicos são os destaques do texto original; os negritos e os negritos vermelhos são destaques nossos.

SUGESTÕES DE LEITURAS
Marxismo, guerras e revoluções – Issac Deutscher. Ática, 1991. SP.
A vingança da História: o marxismo e as revoluções do leste – Alex Callinicos. Jorge Zahar Ed., 1992. RJ.
A crise da crise do marxismo: Introdução a um debate contemporâneo – Perry Anderson. Brasiliense, 1983. SP.
Depois da queda: o fracasso do comunismo e o futuro do socialismo – Robin Blackburn (org.). Paz e Terra, 1992. RJ.





Como bem resumiu Nelson Rodrigues: “Não caçamos pretos, no meio da rua, a pauladas, como nos Estados Unidos. Mas fazemos o que talvez seja pior. A vida do preto brasileiro é toda tecida de humilhações. Nós o tratamos com uma cordialidade que é o disfarce pusilânime de um desprezo que fermenta em nós, dia e noite.”

terça-feira, 15 de maio de 2018

PÓS DELIRIUM 1: SÓ AS MÃES SÃO FELIZES?

Divulgando...


Um segundo domingo não é suficiente para reconhecer a maternidadeSobrecarga, solidão e falta de apoio são rotina para mães brasileiras, que lutam para dar conta da responsabilidade que é educar uma criança.
Maio mal põe o pezinho na porta, e os comerciais já enlouquecem os consumidores com mil opções de presentes para o Dia das Mães. Flores, chocolates e eletrodomésticos sempre desfilam entre as sugestões.

No entanto, abraços, beijos e cartões não esconderão as dificuldades diárias que as mães enfrentam, desde a violência no parto à dificuldade de permanecer no trabalho após o fim da licença-maternidade. O Dia das Mães é a segunda melhor data do comércio no Brasil e nos Estados Unidos e só perde para o Natal. Uma data como esta só tem mesmo beneficiado o comércio, porque as mães continuam pagando um alto preço por terem filhos.

Em um país com 5,5 milhões de crianças sem pai no registro, é hipócrita oferecer flores a essas mulheres que cuidam sozinhas de suas crianças a vida inteira e, além de criarem sozinhas seus filhos, correm risco de serem demitidas após o fim da licença-maternidade.

Sobrecarga, solidão e falta de apoio são a realidade da maioria das mães brasileiras, que lutam diariamente para darem conta da responsabilidade imensa que é educar uma criança. Diante dessa responsabilidade solitária, é importante que a sociedade pare de romantizar e endeusar a maternidade. É preciso enxergá-la como ela é: cheia de amor, mas uma função social renegada por todos, mas cobrada e vigiada a todo tempo, com direito a dedos apontados e cobranças inalcançáveis.

Não dá para comemorar uma data sem antes falar que uma em cada quatro brasileiras diz ter sofrido violência obstétrica, nome dado ao "conjunto de atos desrespeitosos, abusos, maus-tratos e negligência contra a mulher e o bebê, antes, durante e depois do parto" (OMS, 2014). É assim que começa a maternidade para muitas: de forma sofrida, desrespeitosa e recheada de violência de todos os tipos.

Esse desrespeito atinge também a escolha de cada mulher sobre a forma como ela deseja dar à luz. De acordo com o estudo Nascer no Brasil, 70% das gestantes desejam ter um parto normal no início da gravidez, mas poucas são respeitadas e apoiadas em sua escolha, e a cesariana é realizada em 52% dos nascimentos na rede pública. Esse número alcança 88% na rede suplementar de saúde enquanto a OMS recomenda apenas 15% de nascimentos sejam realizados via cirurgia.

O sofrimento vivenciado por muitas no parto continua no momento da amamentação. Falta de auxílio e orientação, prescrições de leite artificial desnecessárias dentro da própria maternidade e a publicidade que massacra com seus encantadores comerciais de leites artificiais diversos, que deveriam apenas ser utilizados em casos de real necessidade.

Todos esses fatores contribuem para a trágica taxa brasileira de amamentação: aleitamento materno exclusivo apenas por 54 dias enquanto a OMS recomenda seis meses. Perde o bebê a oportunidade de receber o melhor alimento. Perde a mãe por deixar de se beneficiar da amamentação, já que, segundo estudos, para cada 12 meses de amamentação a mãe reduz 4,3% do risco de desenvolver câncer de mama. Perde a família por deixar de se beneficiar de um alimento completo, perfeito para o bebê e gratuito.

Esse cenário precisa ser encarado como realmente é: não é a mãe a culpada pelo desmame precoce. É a publicidade, o descaso dos profissionais que deveriam orientar de forma correta, a sociedade que vê seios apenas como símbolo sexual e faz que mulheres sintam-se constrangidas e até proibidas de amamentar em público. Não vamos carregar mais essa culpa sozinhas. Vamos dividi-la com todos os envolvidos.

E quem, afinal, vai dividir com as mães o fardo de ser mulher e mãe nesta sociedade? Basta olhar ao redor: universidades sem creches. Eventos para mães sem espaço para crianças. Licença-maternidade que não chega ao tempo recomendado para o aleitamento materno exclusivo. Licença-paternidade que não serve para o real apoio à mãe e ao bebê. Empresas que não contratam mães com filhos pequenos. Cara feia para criança chorando no voo. Passageiro de transporte público que não cede lugar para mulher com criança. Hotel que não aceita crianças. Empregador que demite após o término da licença-maternidade. Restaurantes que proíbem a presença de crianças.

Uma sociedade que explora e massacra mães diariamente não é digna de fazer de conta que um dia de domingo com flores e presentes é suficiente para mascarar o sofrimento materno. Mulheres vivenciam sua maternidade isoladas e sobrecarregadas em seus lares tendo que escolher entre maternar em sua solidão ou vivenciar o mundo sem seus filhos.

A sociedade cobra da mulher filhos amados e bem criados, mas como bem criar um filho sem o apoio necessário, sem ser bem-vinda em inúmeras esferas sociais e tendo que abrir mão da própria autonomia? Apesar de mãe e filho fazerem parte da sociedade, não são aceitos nela. Neste jogo de exclusão, quem paga a conta mais cara é a mãe.

Mãe é mãe, não é mesmo? Mãe aguenta tudo. Aguenta pai que não paga ou atrasa pensão. Pai que não se mexe na madrugada enquanto o bebê acorda oito vezes. Pai que, apesar da guarda compartilhada, pode dar-se ao luxo de não poder estar com o filho no final de semana que é seu porque surgiu um compromisso. Pai que não comparece às festinhas da escola, às consultas pediátricas e nunca assinou a agenda escolar. Mãe guarda toda essa mágoa e esconde o choro no bolso para que o filho não sinta sua tristeza e o peso que ela carrega sozinha. Mãe sorri para o filho, abraça e beija e finge que está tudo bem. Com o peso do mundo nas costas, ela faz tudo sozinha. Não porque ela é multitarefa ou a Mulher-Maravilha, mas porque há necessidade. Filho não espera. Apesar de desejar profundamente jogar longe a capa de supermãe, ela ainda precisa fazer a comida da criança, arrumar a lancheira, passar o uniforme, buscar na escola, ajudar na lição de casa, fechar os olhos e tentar acalmar-se enquanto seu filho faz uma birra na rua, precisa comprar uma sandália nova porque os pezinhos miúdos estão crescendo e aplaudir o gol que a filha fez no jogo de futebol com um sorriso de orelha à orelha. Mãe é mãe, mas não deveria carregar sozinha a imensa responsabilidade de ter um filho.

Não precisamos de um segundo domingo de maio, desculpem-me os mais emotivos. Essa data é meramente comercial e não passa disso.Não adianta comemorar com um almoço lindo se, no final das contas, são elas - as mães - que terão feito a comida e estarão na cozinha lavando a louça sem ajuda.

Se você acha que estou sendo muito radical ao querer abolir essa data, tudo bem. Venha com flores, mas acorde à noite para ninar o bebê. Venha com chocolate, mas lembre da data do dentista das crianças. Venha com sapatos, mas venha com respeito aos nossos direitos. Venha com joias, mas deixem-nos exercer nosso papel no trabalho em paz. Venha com cartõezinhos, mas deixem-nos parir sem violência. Venha com abraços, mas não ouse nos olhar torto quando estivermos amamentando. Venha com almoço de Dia das Mães, mas lave a louça.

*Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do HuffPost Brasil e não representa ideias ou opiniões do veículo. Mundialmente, o HuffPost oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

PÓS DELIRIUM: SÓ AS MÃES SÃO FELIZES?

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UMA CARTA DE UMA MÃE COMUNISTA

Queridos:

Amanhã vou precisar de toda a minha força e de toda a minha vontade. Por isso, não posso pensar nas coisas que me torturam o coração, que são mais caras que a minha própria vida. E por isso me despeço de vocês agora. É totalmente impossível para mim imaginar, filha querida, que não voltarei a ver-te, que nunca mais voltarei a estreitar-te em meus braços...

Carlos, querido, amado meu: terei que renunciar para sempre a tudo de bom que me destes? Conformar-me-ia, mesmo se não pudesse ter-te muito próximo, que teus olhos mais uma vez me olhassem. E queria ver teu sorriso. Quero-os a ambos, tanto, tanto... E estou tão agradecida à vida, por ela haver me dado a ambos.

Mas o que eu gostaria era de poder viver um dia feliz, os três juntos, como milhares de vezes imaginei. Será possível que nunca verei o quanto orgulhoso e feliz te sentes por nossa filha?

Querida Anita, Meu querido marido, meu garoto: choro debaixo das mantas para que ninguém me ouça pois parece que hoje as forças não conseguem alcançar-me para suportar algo tão terrível. É precisamente por isso que esforço-me para despedir-me de vocês agora, para não ter que fazê-lo nas últimas e difíceis horas.

Depois desta noite, quero viver para este futuro tão breve que me resta. De ti aprendi, querido, o quanto significa a força de vontade, especialmente se emana de fontes como as nossas.

Lutei pelo justo, pelo bom e pelo melhor do mundo. Prometo-te agora, ao despedir-me, que até o último instante não terão porque se envergonhar de mim. Quero que me entendam bem: preparar-me para a morte não significa que me renda, mas sim saber fazer-lhe frente quando ela chegue. Mas, no entanto, podem ainda acontecer tantas coisas...Até o último momento manter-me-ei firme e com vontade de viver. Agora vou dormir para ser mais forte amanhã.

Beijos pela última vez.

Olga Benário Prestes

(Carta escrita nas vésperas de sua execução numa câmara de gás em um campo de concentração)