segunda-feira, 30 de julho de 2018

ATORDOADO, EU PERMANEÇO ATENTO

Vale a pena ler e refletir!


Texto de Breno Góes

ATORDOADO, EU PERMANEÇO ATENTO

Gilberto Gil já repetiu em dezenas de entrevistas (eu tenho a pretensão de ter lido boa parte das que ele já deu) uma mesma informação: a única música do seu repertório de mais de 500 que ele não gosta de cantar é "Cálice", uma parceria sua com Chico Buarque que ele sintomaticamente jamais gravou. Gil diz que fica incomodado por que a música é "tristonha" (link pra uma dessas entrevistas nos comentários). Nunca vi ele com esse tipo de ojeriza de qualquer outra canção que tivesse composto.

Faz sentido, quando paramos para pensar. O Gil é conhecido por uma poética que preza por uma postura de aceitação filosófica e equilíbrio diante da dor e das coisas ruins da vida, bem como diante das coisas boas e felizes. Por um lado, mesmo na lindíssima e alegríssima "Toda Menina Baiana", que Gil compôs pra uma de suas filhas, ele fez questão de lembrar que "toda menina baiana tem defeitos também". Por outro, ele pode ter escrito canções de alguma forma doídas (aí está "Drão", que não me deixa mentir), mas mesmo essas suas músicas quase sempre tem um viés de enxergar o lado bom de uma situação ruim: pensemos na dor da separação que vira pão na própria "Drão", no "êêêê" animado que quebra a tragédia no final do "Domingo no Parque" ou na empolgação que atravessa "Aquele Abraço", a canção do exílio mais festiva e carnavalesca da história (e também a mais bonita). Isso pra ficar só nas mais famosas. Em Gil, a tristeza vem sempre temperada de felicidade e vice-versa... quase sempre. Que eu saiba, em dois significativos momentos essa lógica é rompida:  "Pé da Roseira" (não tão conhecida mas maravilhosa, de 1968) e "Cálice" (composta em 1973, lançada em 1978). São canções TRISTES em que a dor, a impotência e o desespero imperam, sem que nenhuma filosofia venha equilibrar as coisas. O "Pé da Roseira" é o desespero no âmbito privado, diante do fim do amor. O "Cálice" é o desespero público, diante do estado do mundo.

Quando Chico Buarque quis gravar o Cálice, teve que chamar o Milton Nascimento e o MPB-4, porque o Gil não quis embarcar naquela canção barra-pesada em que o substantivo "cálice" vira o verbo "cale-se" e algumas imagens poderosamente desamparadas são cantadas ("como beber dessa bebida amarga, tragar a dor, engolir a labuta?", diz um dos versos mais tristes da língua portuguesa) em um diálogo com o "Pai", a primeira e mais opressiva das pessoas da Santíssima Trindade. Era toda a depressão do regime oriundo do golpe civil-militar de 1964 sintetizada em quatro estrofes e um refrão inesquecível.

Isso me faz pensar no seguinte: todo o Brasil que se leva a sério enquanto tal tem que começar hoje a debater por que motivo Gil decidiu desobedecer ontem as suas convicções e cantar Cálice ao lado do Chico Buarque num ato na Lapa pela liberdade do Lula. O que há de tão forte na pauta do "Lula Livre" que faz um homem como o Gil – respeitado e amado por todos, venerável e acima de qualquer suspeita, eleitor da Marina Silva – enfrentar seus próprios demônios e cantar uma música que o incomoda tanto? Ou, pior ainda: o que será que esse cara está vendo no momento atual do mundo que o moveu a cantar versos tão absurdamente "tristonhos"? Mermão, o Gilberto Gil é o cara do "A Paz", o cara do "A Novidade"... Ele tem várias canções igualmente políticas muito mais amenas que seriam adequadas para um comício. Tem inclusive uma outra parceria com o Chico muito bonita e sutilmente crítica ao capitalismo, que é a "Baticum". Mas ontem ele decidiu dizer pro povo que quer "lançar um grito desumano, que é uma maneira de ser escutado". Ele mandou o cálice. Isso é imenso, e muito pesado. Digo e repito: todo mundo que tem o mínimo de juízo na cabeça tem que tirar uns momentos hoje pra pensar por que motivo o Gilberto Gil finalmente decidiu cantar o Cálice. É uma pergunta difícil pra todos nós, porque a resposta é quase com certeza muito dolorida. Melhor seria ser filho de outra realidade menos morta, sem tanta mentira e tanta força bruta.

Mas que foi lindo foi. Chorei mesmo.


Cálice
Chico Buarque e Gilberto Gil

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça


quinta-feira, 26 de julho de 2018

CIÊNCIAS 1 Ubiratan D’Ambrósio


Divulgando...
Boa tarde povo!
Dia de Pensamento Inquieto! Continuamos com os textos anunciados na primeira postagem. Os mesmos serão divididos em várias postagens pra facilitar a leitura.
Obs.: Lembrando que temos uma novidade! Se você estiver sem tempo para ler o texto, a partir de agora disponibilizaremos um link para que você possa ouvir o texto sintetizado em MP3 (Haverá alguns sotaques visto que são sintetizadores estrangeiros)! O(s) Link(s) estará(ão) sempre entre o primeiro e o segundo parágrafo do texto postado.
Degustem!


CONTINUANDO...

            Tudo é a busca de uma coisa mais imediata que a sua sobrevivência, que todos os animais buscam, que é a sobrevivência de sua espécie e a transcendência ao seu período de existência. Nessa procura de ir para o antes e para o depois, o homem desenvolve a noção de tempo. Desenvolve história, passado e futuro. Nessa construção de conhecimento, que é absolutamente mesclado, que hoje a gente chama de ciência e religião, um ato de filosofia é a mesma coisa, é tudo uma busca pela sobrevivência e transcendência. Mas não separadas, porque a nossa própria busca pela sobrevivência, através da alimentação, está mesclada também por essa busca pela transcendência.
            Na busca de alimentação, por exemplo, o homem desenvolve uma alimentação ritual. O homem é capaz de fazer um ritual com a sua alimentação. Nenhuma outra espécie animal é capaz de fazer isso. Quer dizer, é uma alimentação que associa a sobrevivência com a transcendência. A nossa procriação, quer dizer, o ato que permite a continuação da espécie, nosso ato sexual, é um ato mesclado com algo que escapa à mera sobrevivência. É com emoção, com amor, e se insere nessa busca de algo que á mais do que o que palpável e imediato. E assim a Humanidade se desenvolve, cria conhecimento, motivada sempre por sobrevivência e transcendência.
            Na construção desse conhecimento há a dimensão de muitas naturezas. Claro, há uma dimensão sensorial, os primeiros impulsos, as primeiras informações que a gente recebe do ambiente. É óbvio que, no Pólo Norte, o esquimó desenvolve as suas explicações, as sua maneiras de sobreviver e transcender de maneira completamente diferente de uma pessoa na Amazônia. A informação que vem através do sensorial, do intuitivo, do emocional, do próprio racional, depende do lugar onde está localizado esse grupo, essa espécie. Então, na verdade, o que nós temos são gerações de conhecimentos. Conhecimentos que se dão de uma forma aqui e de outra forma ali.
            Hoje, temos o desenvolvimento de coisas como etnomatemática, como etnociência, coisas que vinham sendo sempre mencionadas. Bom, isso é absoluto, é igual para o mundo inteiro. Quer dizer, temos que nos desenvolver pensando no ambiente que dá a partida, que inicia esse processo de construção do conhecimento e que envolve um processo sensorial, intuitivo, emocional e racional, e, obviamente, está intimamente ligado à realidade que estamos vivendo.
            Mas, voltando ao percurso, a essa grande migração do homem para ocupar todo o planeta, muito disso é possível ser verificado através de restos. Quando o homem fica mais tempo em um lugar, obviamente os arqueólogos conseguem recuperar algumas das coisas deixadas. Hoje, fazemos análises muito boas dessas peças deixadas; através de ossos podemos, inclusive, com o exame do DNA, estudar os restos de milhares de anos. O que notamos é que esses registros chegam a nós de maneira muito espalhada, os restos estão espalhados pelo mundo inteiro. Às vezes encontramos uma certa concentração, em algumas regiões, que nos permite estudar mais essas chamadas ‘paradas’ ou construção de culturas, civilizações.
            E as grandes civilizações encontradas estão espalhadas pelo mundo, mas as conhecemos melhor, tivemos mais acesso, e elas foram mais estudadas porque existem mais elementos sobre algumas grandes civilizações que são chamadas de civilizações da antiguidade. E neste período começamos a falar em história. Porque os registros que temos são melhores, já existindo, em alguns casos, coisas escritas ou grafadas, ou pintadas ou algum tipo de registro que tem facilitado a análise, como os monumentos.
            Essas grandes civilizações da antiguidade, se colocarmos mais ou menos na ordem de dez mil anos antes do presente, começam a aparecer em torno do Mediterrâneo, na civilização do Egito, seguindo o rio Nilo, civilização da Babilônia, da Mesopotâmia, onde hoje se localiza o Iraque; a civilização da china e as civilizações dos Altiplanos americanos. É muito interessante, outras civilizações diferentes dessas que mencionei, são civilizações de altura; os Maias, os Incas, os Astecas, essas que parecem um pouco mais novas, são civilizações que começaram a se estabelecer há mais ou menos uns dez mil anos, e floresceram em torno de uns cinco mil anos, e temos aí um período chamado história. Nesse período, a história nos mostra o que conseguimos recuperar através dos monumentos, dos escritos, e são as maneiras, os modos como essas civilizações explicavam o seu ambiente, como manejavam o seu sistema social, tudo isso produto de conhecimento acumulado desde as primeiras migrações. Isto é, de milhares de anos.
            Esses conhecimentos, que reconhecemos hoje através dos achados arqueológicos, são maneiras distintas de explicações. Os chineses explicavam de um jeito, os hindus de outro, os egípcios e os babilônios de outro, e de uma maneira muito diferente, ainda, os maias, incas e astecas. Explicavam, manejavam e trabalhavam a sua realidade, construíam o seu sistema social, tinham a sua filosofia dentro de esquemas diferentes. Algum intercâmbio entre essas filosofias poderia existir. Estamos descobrindo, recuperando algumas evidências de contatos entre civilizações do Oriente e da América. Parece que havia contato na navegação, inclusive há possibilidade de ter se desenvolvido algum tipo de comércio. Parece que havia contatos, também, há alguns milhares de anos, entre as civilizações do velho mundo e do novo.
            Sem dívida, entre as civilizações do Extremo Oriente e da Europa a dinâmica cultural não pode ser deixada de lado em todas essas considerações. Mas a dinâmica cultural que põe em contato dois sistemas distintos e com isso produz alguma coisa distinta, torna-os diferentes. Os dois sistemas não ficam iguais, necessariamente.
            Insisto no fato de que essas culturas, essas civilizações, desenvolvem suas maneiras de explicar, suas maneiras de conhecer, de maneira distinta. Ora, neste processo o que sempre notamos é que a maneira de construção deste conhecimento segue um trajeto que é mais ou menos o mesmo. É a realidade impactando o indivíduo através dos sentidos, emoção, intuição, ação ou o que for, impactando indivíduos que se comunicam – portanto povos – e esses povos gerando conhecimento para manejar, explicar, entender, para se desenvolver nessa realidade. Ao fazer isso, esse conhecimento é de alguma maneira estruturado e expropriado pela estrutura de poder, que depois devolve ao povo o conhecimento, devidamente elaborado e filtrado. Essa política da devolução do conhecimento é extremamente importante, e sobretudo afeta os dias de hoje.
            Bom, no curso dessa produção o que estamos notando, e a história nos dá muitos elementos para isso, é o aparecimento de um conhecimento em torno do Mediterrâneo, que tem as suas características diferentes daquilo que acontecia na China ou entre os Maias, que acaba sendo expropriado e manejado pela estrutura de poder dominante. É um conhecimento que os gregos, os babilônios, os egípcios, os romanos desenvolvem, e acaba ficando na mão daqueles que têm mais poder, acaba ficando na mão de mundo romano.
            E ao iniciar o que hoje chamamos de Era Cristã, os romanos absorveram todo o conhecimento grego, muito bem, (ao contrário do que muitos historiadores dizem, por que os romanos dominavam a língua grega e sabiam ler Aristóteles, Euclides, etc.). dominavam aquele conhecimento, e por sua vez absorveram muita coisa da Ásia, do Egito e da Babilônia. Os romanos empregaram daquele conhecimento o que lhes interessava na construção do seu império. E a construção do Império Romano é extremamente importante e interessante porque, na verdade, é a construção do mundo moderno. É ali que se estabelecem as bases deste mundo onde estamos vivendo, e se estabelecem os princípios básicos de legislação, de vida social e de vida urbana. Acho que a melhor fonte para sentirmos o que foi o Império Romano é um livro, que é rechaçado por razões fáceis de serem explicadas, chamado Os dez livros de arquitetura de Bitruvius. Ele nos dá um belo quadro da filosofia do Império Romano, o que se pretendia nele e qual o grau de conhecimento daquele império.
            O que notamos é que o Império Romano se desenvolve, tem o seu apogeu entre os anos 50 e 60 desta era, quando os judeus são dispersados e espalham um outro tipo de conhecimento que tem de ser preservado e mantido e que se instala nos principais centros do Império Romano. Isso também tem sido pouco estudado pelos historiadores da ciência, e esse conhecimento é extremamente importante na construção do mundo moderno. Instala-se no mundo romano e se mantém, enquanto este começa a desenvolver outro conhecimento cuja grande finalidade é a construção de uma nova religião, que é a religião adotada pelo Império Romano. Uma religião que foi adotada quando Constantino fez as pazes com a Igreja, e o imperador Teodósio reconheceu a Igreja como uma instituição ligada ao Império Romano, oficializando o cristianismo. O cristianismo não existia.
            O que é o cristianismo? É uma série de escritos que estão soltos, quatrocentos, quinhentos, seiscentos escritos falando de um homem que, historicamente, naquela época, não tinha tido importância. Um homem que ninguém havia conhecido, que não representava nenhuma estrutura de poder. E o cristianismo entra nesse processo maravilhoso de construir uma teologia, construir uma coisa nova, e sua grande primeira figura é Santo Agostinho. E entrada de Santo Agostinho na história é decisiva, porque ele começa a impor credibilidade. Imagine uma religião que é adotada por um império, que era o império dominante! Como é que se podia dizer: “Bom, esses são os fundamentos filosóficos da religião”, utilizando alguns evangelhos, alguns deles de uma pobreza literária e filosófica enorme, e confrontar isso com outros sistemas filosóficos, como por exemplo o dos gregos, que o Império Romano dominava. Alexandria era uma cidade do Império Romano. Atenas era uma cidade do Império Romano. Os filósofos romanos, naturalmente, frequentavam Alexandria e Atenas. Dizer que romano não entende de grego é uma besteira total.
            Mas, claro, na hora em que o império oficializa uma religião, ela tem que ter fundamentos filosóficos. E esses fundamentos não podiam sair dos judeus que existiam lá pela Europa, porque eles estavam procurando preservar o seu judaísmo. E seria uma contradição, o romano liquidar o reino de Israel, espalhar os judeus e de repente adotar sua religião. Não podia! Tinha que ser uma religião nova que, de alguma maneira, tivesse um certo atrativo para aqueles que estavam dando trabalho aos romanos, e que passaram a dar menos trabalho porque se cristianizaram, se incorporaram ao império. Uma religião atrativa para eles, que é a religião cristã, misturando elementos de paganismo e ao mesmo tempo com uma base filosófica sólida. E daí entra Agostinho na história, e culmina essa construção da base filosófica com São Tomás de Aquino.
            Ora, em todo esse processo, tudo o que se faz, a construção do conhecimento científico, do conhecimento religioso, conhecimento artístico, quer dizer, as catedrais, o gótico, Gioto... O que são? Estão todos em torno desse grande projeto nacional, que é o projeto de construção do Império Romano, agora cristão. Aonde conhecimento se mescla com ciência, religião, arte, com tudo. E essa construção é a base do pensamento moderno e o que fundamenta suas bases sai dos mosteiros. Lord Backer veio de um mosteiro, Okar era monge, todos eram monges e são os precursores, são aqueles que trabalharam na Idade Média na construção desse conhecimento que hoje a gente chama de moderno.
            Um outro grupo vinha da prosperidade, eram os comerciantes. Finobate, que era o filho de Bonate, um grande mercador que introduziu todo sistema de numeração na Europa, mudou totalmente o tipo de explicações que se dava, através de uma coisa chamada ciência. Os árabes, com toda a ciência dos gregos, não utilizaram a numeração arábica da maneira como os europeus utilizaram. E daí, provavelmente, porque a grande revolução científica de Newton não ocorre entre os árabes, que tinham os mesmos elementos para fazer essa revolução.
            Mas o grande desenvolvimento do Mercantilismo na Europa iniciou-se com as cruzadas. E o que foram as cruzadas? Abrem novas rotas, quer dizer, mais comércio, vão buscar mais coisas, lá na Índia. Abrem as navegações. O que significa a navegação? Quer dizer mais comércio. Por que os portugueses estão interessadíssimos em dar a volta ao mundo e chegar à Índia? Porque era uma rota melhor. Por que entrar pela rota europeia e competir com os países maiores? Descobrir uma rota própria, aí sim, fazia-se um bom negócio.
            E os portugueses desenvolveram toda a navegação. Por que os espanhóis foram navegadores? Também queriam superar a Itália e vão por sua própria rota. O mundo é redondo, todo mundo sabia. E daí se desenvolve a grande força do comércio, com aquele suporte da construção do cristianismo que foi dominante no Império Romano. E surgem elementos importantíssimos vindos dos escandinavos, dos germanos, um pensamento científico nos séculos XV, XVI.
            Os historiadores da ciência têm produzido uma grande distorção nos séculos XVII e XIX, para atribuir esse pensamento científico ao pensamento grego, como se fosse um passo além, um produto do pensamento grego. Não é nada disso, é um pensamento inteiramente novo, produto da construção de um sistema religioso e de um sistema comercial que se associam, a partir do século XVII, com Newton, numa empresa enorme que é a empresa colonial. Até aí não se pensava em descoberta de novos povos que pudessem ser trabalhados, ou novas terras que pudessem entrar no sistema de produção, da maneira como entraram as colônias.
CONTINUA NA PRÓXIMA QUARTA...
Obs.: Os negritos itálicos são os destaques do texto original; os [  ], os negritos e os negritos vermelhos são destaques nossos.




quinta-feira, 5 de julho de 2018

CIÊNCIAS Ubiratan D’Ambrósio


Divulgando...
Boa tarde povo!
Dia de Pensamento Inquieto! Continuamos com os textos anunciados na primeira postagem. Os mesmos serão divididos em várias postagens pra facilitar a leitura.
Obs.: Lembrando que temos uma novidade! Se você estiver sem tempo para ler o texto, a partir de agora disponibilizaremos um link para que você possa ouvir o texto sintetizado em MP3 (Haverá alguns sotaques visto que são sintetizadores estrangeiros)! O(s) Link(s) estará(ão) sempre entre o primeiro e o segundo parágrafo do texto postado.
Degustem!


GUETO DO PENSAMENTO INQUIETO
CIÊNCIAS
Ubiratan D’Ambrósio – Matemático, Cientista, Signatário das Declarações de Veneza, de Vancouver e de Belém
O Pensamento Inquieto (Curso de Extensão Universitária a Distância). Organização de Clodomir de Souza Ferreira, João Antonio de Lima Esteves e Laura Maria Coutinho – Brasília: CEAD/Editora Universidade de Brasília, 1993. (pp. 39 a 52).
QUESTÕES PARA RELFEXÃO
Nenhuma língua se impôs ao mundo inteiro. Nenhuma religião. A única coisa que se impôs ao mundo inteiro foi o pensamento científico. Mas, podemos desconfiar que alguma coisa falhou nessa Ciência, na hora de conduzir o mundo ao que ele é hoje. Podemos ver através de seu filhote, a Tecnologia, os absurdos criados por ela mesma. Através da mesma televisão colorida vemos os famintos esqueléticos da Somália e maravilhosos campos de trigo, cultivados com auxílio da ciência e da tecnologia. Para que serve a Ciência? Ela tem algo a ver com as questões da religião, filosofia, ética? Podemos formar um cientista sem cuidar de sua formação ética? (“onde você já leu um livro de ciências que comece com alguma discussão ética?”). Estes são alguns pontos da instigante reflexão conduzida pelo professor Ubiratan D’Ambrósio durante o primeiro Fórum do Pensamento Inquieto.
            A Declaração de Veneza é o produto de uma iniciativa da Unesco apoiada pela Fundacion de Tiner, da Itália. Iniciativa da Unesco foi criar um Fórum de Ciência e Cultura, onde o objetivo principal era o reencontro. E a primeira reunião foi em Veneza, denominada Ciências do Espírito Científico e de Tradições, que é o espírito que muitos classificam como não científico.
            Esse reencontro entre as ciências e as tradições, e gosto de falar reencontro e não encontro, na verdade é o resultado de uma olhada para a história. E a reunião de Veneza foi a primeira de uma série, das quais resultou a Declaração de Veneza.
            É muito interessante porque Veneza, na verdade, é um lugar que simboliza aquele nascimento do espírito científico. Quando a gente pensa em Galileu, por exemplo, Veneza representa aquela época.
            A primeira reunião foi em Veneza, a segunda reunião, o Fórum de Ciências e Cultura, foi em Vancouver, três anos depois. Vancouver representa, também, o moderno, a civilização que resulta do espírito tecnológico, uma cidade altamente moderna, onde o local, o tradicional, foi quase que coberto pelos grandes edifícios, pelas grandes estradas, o que representa a modernidade suprimindo as tradições. Embora haja um grande esforço, desde cedo, do governo canadense de se reaproximar das civilizações e culturas indígenas, na verdade, isso é feito depois de liquidar essas culturas indígenas, de liquidar esse ambiente. É um moderno que se impôs ao tradicional. Na terceira reunião, procuramos algo onde o moderno e o tradicional coexistissem, com alguma precariedade, mas coexistissem. Precariedade de ambos os lados, com o tradicional sofrendo e o moderno também.
            E escolhemos como sede da terceira reunião dessa série, Belém. Em abril deste ano tivemos o III encontro da série Fórum de Ciência e Cultura, realizado em Belém. E assim, temos mais duas declarações que são: Declaração de Vancouver e Declaração de Belém, que junto com a Declaração de Veneza formam um todo, procurando refletir sobre a ruptura entre ciências e tradições que se dá, sobretudo, a partir do aparecimento da ciência moderna nos séculos XVII, XVII e XIX, e a necessidade urgente de se restabelecer esse diálogo entre ciências e tradições para a construção de um outro espírito científico, de uma outra ciência. De uma ciência que leve em conta aquilo que aprendemos, aqueles erros que podemos identificar na ciência, que chamamos de moderna, e que se iniciou nos séculos XVII e XVIII.
            Essas três declarações constituem o todo de um documento de grande importância, que logo será publicado aqui, incluindo o conjunto das três declarações, acrescido de uma outra declaração que está mais ou menos no mesmo espírito, e que vem de um outro grupo. É uma declaração conhecida como Declaração de Dagoms, que é uma cidade na antiga União Soviética, na Geórgia. Esta declaração foi escrita em 1998 como resultado de uma reunião do chamado Movimento Pugwash. As conferências Pugwash são fruto de uma organização de cientistas de todo o mundo, criada em 1955 por Albert Einstein e Bertrand Russel, após o lançamento do manifesto, onde eles alertavam o mundo para o perigo da corrida armamentista nuclear, toda a insanidade por trás da guerra fria, a produção de armamentos que, se usados, poderiam representar a destruição de todo o mundo. E, se não usados, como felizmente não o foram e possivelmente não o serão, também carregam uma dose de insanidade, porque a sua produção tem como objetivo o medo, atemorizar o inimigo.
            A tal da política da Détente o que é? É uma política que diz: “Você se comporte, porque eu sou mais forte que você. Portanto, faça aquilo que quero que você faça; comporte-se de maneira adequada, porque de outra maneira o destruo”. Ora, isto carrega uma imoralidade indiscutível. E essa imoralidade está implícita na guerra fria, na produção de armamentos, na formação e na manutenção de forças armadas em todo o mundo. Essa imoralidade é algo que nos deixa inquietos.
            O Fórum do Pensamento Inquieto constitui-se espaço adequado para esse tipo de discussão, porque ser inquieto é algo que vem sendo a marca do homem em toda a história da humanidade. Uma inquietação que pode resultar num alto grau de criatividade. Uma inquietação em que queremos fazer mais e melhor, e para o bem. E uma inquietação que pode ser exatamente o oposto. Uma inquietação de incerteza, de angústia, que resulta do medo, que faz com que a nossa reflexão sobre o futuro seja muitas vezes pessimista.
            Falar sobre o Pensamento Inquieto é, na verdade, falar sobre a história da ciência. O que é ciência? De onde vem isso? Bom, a nossa espécie tem uma história muito longa. Quando ela apareceu neste planeta, dentre as demais espécies, seja criada ou evoluída, não há muita discordância em que a espécie apareceu na ordem de três ou quatro milhões [de anos] por todo o planeta. A teoria mais recente, do Metocôndrio, diz que essa primeira grande migração por todo o planeta não deu certo. Quer dizer, a migração da qual somos descendentes e que levou nossa espécie a todo o planeta é uma migração que se deu muito mais recentemente, questão de duzentos ou trezentos mil anos, e vem, também, dos altiplanos da África, do coração da África onde situa-se, hoje, o Quênia ou das proximidades.
            Seja a primeira migração ou a segunda, o fato é que o homem se espalha por todo o planeta, e ao se espalhar vai, nesse processo, construindo conhecimento. É uma espécie que constrói conhecimento a partir do que sente da realidade, a partir do impacto que a realidade produz no ser humano. Esse conhecimento é gerado por informações que a realidade lhe dá, e obviamente esse conhecimento vai atendendo a duas grandes forças. Uma delas é o nosso componente animal, é a força da sobrevivência. O homem, enquanto caçador e coletor, vai procurando nos lugares onde ele possa encontrar elementos para a sua sobrevivência. E ao mesmo tempo, uma característica muito peculiar à nossa espécie é a busca de explicações, de entendimento, de compreensão.
            Uma busca de explicações, de procurar entender o que é, de saber o que é, procurar fazer de uma maneira planejada, seguindo estratégias. É muito interessante que essa palavra, essa noção, seja usada no grego com o nome de matema. Quer dizer, as duas grandes forças, a sobrevivência e a busca de explicações, de entendimentos, são os grandes motores da produção do conhecimento. E o homem sai lá do coração da África e vai se espalhando, produzindo conhecimento. Conhecimento com um nível de sofisticação cada vez maior. Ele vai descobrindo o fogo, vai aprendendo a manejar o fogo, a fazer o fogo.
            Ele vai aprendendo a se comunicar, a escolher melhor os alimentos, vai aprendendo, quando escolhe alguma coisa interessante, a conservar, a armazenar esses alimentos. E continua o seu projeto de caçador procurando diminuir o risco na caça; inventa o disparo. Começa a ter contato com as outras espécies, através do disparo de flechas, e com isso ele vai adquirindo um poder diferente das outras espécies que a simples sobrevivência não daria.
            Vai construindo conhecimento, que lhe permite selecionar o que é bom para comer e o que não é bom, lhe permite abrigar-se, utilizar peles de outros animais para se cobrir, para se proteger do clima, e assim a espécie vai evoluindo na construção do conhecimento,e obviamente essa construção do conhecimento vai implicando um maior desenvolvimento da capacidade cognitiva.
            Os sentidos se aprimoram. O sentido, por exemplo, do tato; a capacidade de notar pequenas variações de temperatura, possivelmente, não era desenvolvida nos primeiros homens. Hoje, temos um tato bem desenvolvido, a visão é mais aguçada, a audição também. Outros sentidos talvez estejam em desenvolvimento. Sentidos que agora dificilmente reconhecemos, é possível que estejam em desenvolvimento, como aconteceu com o tato ou com a visão, cem mil anos atrás. Nesse processo o homem vai se fixando em vários locais, e parece que sua chegada mais recente foi na América, e agora estamos descobrindo evidências de ocupação das Américas, cinquenta, sessenta mil anos atrás.
            A ocupação se dá e nela encontramos o homem, neste processo, sempre procurando explicar e entender o seu entorno, manejá-lo bem. Ele vai desenvolvendo conhecimento,e o conhecimento vai se acumulando, sendo passado de geração para geração, através de várias formas de comunicação. Com esse acúmulo de conhecimento se dá a organização de indivíduos em grupos sociais; surge o problema da cidade, o problema dos grupos, das tribos e depois de grupos maiores, o que representa acúmulo de modos de explicar, de modos de se comportar, de fazer as coisas, que é o fenômeno da cultura. E a cultura vai se fixando. Claro, nessa inquietação do homem, de procurar explicar, entender, manejar bem o seu ambiente, duas coisas são notadas e evidentes: nascimento e morte. São duas fontes de inquietação muito grande.
            Como o indivíduo nasce? De onde ele vem? Como apareceu esta nova criatura? Essa nova criatura, estranhamente, nasce parecida com a gente, e cresce, fica maior, fica mais pesada, mais ágil, participa do nosso meio sempre parecida com a gente, do mesmo jeito. Que coisa mais interessante! Enquanto você vê plantas e animais que mudam. Você olha para um sapinho, ele nasce de um jeito, de repente fica de outro. Você vê plantas que nascem de um jeito, depois ficam de outro. Você vê árvores que produzem plantas, depois flor e depois frutos. Nós nascemos do mesmo jeito e ficamos iguais durante toda a vida. Quer dizer, alguma coisa a mais do que o simples aparecimento de um indivíduo, de uma unidade. De onde vem isso?
            E de repente morre, e pouco depois desapareceu. Sumiu. É reduzido a esqueleto, a pó. Então, para onde foi? São buscas de explicações, são inquietações naturais do ser humano e que vão pedindo cada vez mais explicações, entendimentos, e vai surgindo o conhecimento religioso, que obviamente não se afasta do conhecimento que lhe permite manejar o seu dia-a-dia de maneira adequada. E o conhecimento de distinguir ciência e religião é alguma coisa extremamente difícil, quase impossível.
            As dimensões da construção desse conhecimento científico e religioso, do conhecimento que hoje a gente chama de religioso, mas que, obviamente, não faz sentido em outras culturas, leva-nos a preocupações, a criações, a imaginações como algo que se “experimentou”, e como algo a que não se tem acesso direto.
            Justamente, essa ideia de ir para antes do nascimento e ir para depois da morte, leva-nos, naturalmente, ao desconhecido. E há uma série dês proposta em todas as culturas, de se penetrar nesse desconhecido através de várias maneiras. Drogas aparecem em todas as culturas; rituais, que num certo sentido têm o efeito da droga, por exemplo, o tipo de hipnose pelo ritual, pela música, e, naturalmente, fantasias, como adorno, construção de imagens, muitas delas puro fruto da imaginação. Tudo isso entra nessa busca de explicar aquilo a que não se tem acesso mais direto, e portanto a arte entra com o mesmo envolvimento em tudo isso.
CONTINUA NA PRÓXIMA QUARTA...
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ELA MERECE!



terça-feira, 3 de julho de 2018

Brasil: CAMPEÃO MUNDIAL... de desigualdade

Divulgando de Carta Capital...


Convicta de ser "apenas" classe média, a turma do 1% não se enxerga

por André Barrocal — publicado 02/07/2018 00h30, última modificação 29/06/2018 13h17
No país em que o berço determina, uma renda mensal de 27 mil reais coloca o cidadão em um clube vip de 860 mil brasileiros.
Hervé Cortinat/OECD
Se o mundo tem se tornado mais desigual, como observa a OCDE, o Brasil é pioneiro no assunto, uma espécie de inspiração para os magnatas do planeta.
O Brasil de Michel Temer pediu no ano passado adesão à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, um clube de 35 nações ricas ou simpatizantes, mas, por enquanto, passa vergonha, pois os Estados Unidos preferem a entrada da Argentina de Mauricio Macri, amigo de Donald Trump. Em 15 de junho, a OCDE foi motivo de outro embaraço nacional, por razões um pouco mais antigas do que o governo Temer.
Ao estudar como tem sido a mobilidade social desde a década de 1990, a entidade constatou que a coisa vai mal mundo afora e pior ainda por aqui. A distância entre ricos e pobres aumenta no planeta, especialmente desde a crise financeira global de 2008. É cada vez mais difícil que alguém nascido na pobreza melhore de vida e alcance o padrão médio dos conterrâneos.
Nesse quesito, o Brasil figura em penúltimo lugar em um ranking de 30 países, ao lado da África do Sul e à frente apenas da Colômbia. De cada 10 filhos de famílias brasileiras miseráveis, 3,5 morrerão miseráveis e somente um tem chance de chegar ao topo.
Para quem já está no topo, esta terra em que se plantando tudo dá é, ao contrário, uma delícia. Quase metade dos descendentes dos endinheirados tende a prosperar, e andar para trás é um risco para bem poucos.
“No Brasil, as circunstâncias dos pais desempenham um fator importante na vida das pessoas. O status econômico e social transmite-se fortemente através das gerações”, diz a OCDE na pesquisa “Elevador social quebrado?” A reprodução do status através do berço é, certamente, o caso do 1% mais rico do Brasil. Por aqui, essa turma leva para a casa uma fatia da renda nacional com uma gula peculiar, e tem sido assim há quase um século.
É o que conta uma tese de doutorado em sociologia apresentada na Universidade de Brasília, a UnB, em 2016, com o título “A Desigualdade Vista do Topo: a Concentração de Renda Entre os Ricos no Brasil, 1926-2013”, ganhadora no ano passado do prêmio de melhor tese do ramo.
Segundo seu autor, Pedro Herculano Guimarães Ferreira de Souza, técnico do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), os brasileiros do 1% embolsam historicamente de 20% a 25% da riqueza nacional, com uma média anual de 23%, enquanto em outras nações marcadas pela desigualdade, como EUA e Colômbia, a mordida é de 20% para baixo.
“Tamanha concentração destoa dos padrões internacionais e coloca sempre o Brasil entre os países mais desiguais dentre aqueles com dados disponíveis. Com isso, não é exagero reafirmar que o quinhão apropriado pelos ricos é o traço marcante da desigualdade brasileira”, anota Pedro Herculano.
Quer dizer, se o mundo tem se tornado mais desigual, como observa a OCDE, o Brasil é pioneiro no assunto, uma espécie de inspiração para os magnatas do planeta.
Mas quem são esses brasileiros do 1%? É possível ter uma ideia, graças a dados coletados pelo IBGE na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). Da população de 207 milhões de pessoas, o Brasil tinha no ano passado 124 milhões com algum tipo de renda – trabalho, aluguel, aposentadoria, pensão, mesada, Bolsa Família, e por aí vai. O tipo mais importante, pelo número de envolvidos e pelo volume de dinheiro gerado, era o trabalho, fonte de provento para 86 milhões de indivíduos.
Dentro dessa categoria de rendimento, o 1% mais rico abiscoitou, em média, 27 mil reais por mês, uma cifra quase igual à de 2016. Um clube vip de 860 mil brasileiros. As pistas para identificá-los estão em estatísticas que a Receita Federal divulga desde 2015 a respeito do Imposto de Renda. São sócios e dirigentes de empresas, donos de cartórios, juízes, promotores e procuradores de Justiça, médicos, diplomatas, advogados.
No ano passado, 28 milhões de contribuintes prestaram contas com o Leão por ganhos obtidos em 2016. Os titulares de cartório, 9,6 mil ao todo, declararam renda mensal média de 100 mil. Juízes, promotores, procuradores e membros de tribunais de contas, um total de 35 mil pessoas pagas com verba pública, desfrutaram de 51 mil.
Diplomatas e afins, contingente de 2,2 mil também remunerado pelo Erário, gozaram de 36 mil. Detalhe: donos de cartórios, membros do sistema de Justiça e diplomatas informaram patrimônios milionários, variável de 1,3 milhão a 1,6 milhão de reais por cabeça, em média.
Os médicos, tropa de 351 mil pessoas, tinham, em média, 28 mil de renda mensal e 850 mil em bens. Os advogados a serviço de órgãos públicos, 28 mil indivíduos, possuíam renda de 27 mil por mês, em média, e bens de 549 mil.
No caso de quem se apresentou ao Fisco como dirigente de firmas industriais, comerciais e prestadoras de serviços, a renda média de 12 mil mensais não garante carteirinha do clube do 1%.
Mas informações apresentadas obrigatoriamente à Comissão de Valores Mobiliários, a CVM, por companhias com ações negociadas na Bolsa permitem ver a pulseira vip no pulso ao menos dos dirigentes dessas companhias. O custo médio delas com 1,3 mil executivos no ano passado foi de 137 mil reais, conforme noticiado em maio pelo jornal Valor.
A turma do 1% levou para casa, no ano passado, 36 vezes o que ficou com a metade mais pobre dos brasileiros, sendo este último grupo formado por pessoas com renda média de 750 reais mensais. Quer dizer, quem embolsa 27 mil por mês pode espernear que é “apenas” classe média, mas, diante do nível de renda de um país de 207 milhões de habitantes, o esperneio é pura modéstia.
São ricos, sim. A casta do 1% goza de certos privilégios para garantir sua reprodução através das gerações que não se resume a grana. É o que o sociólogo Jessé Souza, ex-presidente do Ipea, chama de “capital cultural”, conceito desenvolvido por outro sociólogo, o francês Pierre Bourdieu, morto em 2002.
Por esse conceito, quem nasce em berço de ouro recebe em casa, digamos, ferramentas afetivas e emocionais que preparam a pessoa para que suas habilidades e capacidades possam florescer ao longo da vida. É bem mais do que educação, está citada na pesquisa da OCDE como fator-chave para explicar a pouca mobilidade social no Brasil.
Segundo Jessé Souza, é errado achar que toda pessoa que nasce, não importa onde, é dotada do mesmo potencial. Esse potencial depende do tipo de socialização familiar. Os endinheirados, por exemplo, podem comprar tempo livre tanto para si, ao contratar quem cuide do filho, quanto para o próprio filho, ao dar-lhe sustento sem que ele tenha de trabalhar desde cedo para ajudar em casa, como acontece com os filhos da pobreza.
Uma criança que fica em casa tem mais chance de desenvolver, por exemplo, a capacidade de concentração, “que não é algo natural, é um privilégio de classe”, na visão de Jessé Souza. Democratizar o capital cultural seria a coisa mais importante nas sociedades democráticas modernas, pois o capital econômico é concentrado em todo lugar, diz.
Uma necessidade bem maior no Brasil, onde esse capital cultural é ainda mais concentrado do que na Europa, uma constatação que deveria ser levada em conta, segundo Souza, nas análises do economista francês Thomas Piketty, um dos mais renomados estudiosos da desigualdade no mundo.
Foi após o lançamento do badalado livro de Piketty, O Capital no Século XXI, publicado em 2013 na França e em 2014 por aqui, que a Receita passou a divulgar algumas estatísticas sobre o Imposto de Renda que agora permitem ter uma noção de quem faz parte da casta do 1% no Brasil.
O País tinha ficado de fora do livro, uma obra que examinou a concentração de renda pelo globo, exatamente por falta de dados disponíveis. Ao examinar as estatísticas do Leão, o economista Fernando Nogueira da Costa, vice-presidente da Caixa Econômica Federal de 2003 a 2007, é mordaz.
“Poder é ter o poder de determinar a própria renda”, diz. Em outras palavras, quanto mais perto dos polos de poder, mais perto da casta do 1%. Juízes e procuradores de Justiça são exemplos disso. Em março, fizeram protestos contra o julgamento do auxílio-moradia e tiveram sucesso em salvar a mordomia. Jornalistas e repórteres, 55 mil soldados do poder midiático que prestaram constas ao Fisco, tiveram renda média de 17 mil reais por mês.
Um patamar que garante a categoria entre os 10% mais ricos, formados por quem ganhou 9 mil ou mais por mês em 2017, conforme o IBGE. Quem não faz parte explicitamente do poder, comenta Costa, tem “como boa ocupação cuidar, inclusive da diversão, dos poderosos: médicos, pilotos, atores, jogadores de futebol...”.
A renda média dos médicos já se viu. A dos pilotos de avião e de comandantes de navio foi de 23 mil reais por mês em 2016. A dos atletas e desportistas, de 22 mil. A de atores e diretores de espetáculos, de 19 mil.
De volta a Piketty. De passagem pelo Brasil, em setembro de 2017, para palestras em São Paulo e Porto Alegre, ele esboçou sua visão sobre as razões da concentração de renda no País, agora que dados começam a aparecer. Vê duas causas históricas principais.
O fato de a escravidão ter demorado para acabar (o Brasil foi o último a abolir essa coisa perversa) e a pouca cobrança de imposto dos ricos, uma arrecadação que, se fosse maior, proporcionaria ao Estado verba para ampliar investimentos capazes de dar melhores condições ou perspectivas de vida aos mais pobres, como nas áreas de educação e saúde.
Na recente pesquisa da OCDE sobre mobilidade social, há umas recomendações parecidas sobre o que fazer, como ampliar os investimentos em educação (sobretudo na de base) e em saúde – o que vai ser difícil com o congelamento de gastos sociais por 20 anos aprovado pelo governo Temer –, além de reformar o sistema tributário.
“A elite sempre tem um monte de desculpas para não pagar impostos, e isso também ocorre em outras partes do mundo. A questão é saber por que a elite no Brasil tem sido bem-sucedida ao evitar mudanças no sistema tributário”, disse Piketty em uma entrevista quando veio aqui em 2017.
O Brasil tem tradição de taxar mais o consumo e menos a renda e a propriedade, ao contrário do padrão visto entre os países da OCDE. Os ricos agradecem, pois a fatia que gastam com comida, transporte e roupas é proporcionalmente bem menor do que acontece numa família pobre, obrigada a gastar tudo para sobreviver.
Eles se alimentam, sobretudo, de uma jabuticaba, cujo tamanho pode ser medido nas estatísticas da Receita sobre o Imposto de Renda. Os ricaços daqui, a turma do 1%, se esbaldam com uma isenção fiscal dada por uma lei de 1995, primeiro ano do governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso. Quem é sócio de uma empresa e recebe lucros e dividendos dessa empresa não precisa, como pessoa física, pagar IR sobre esse ganho.
A justificativa? Cobrar imposto seria bitributação, pois a empresa já foi taxada enquanto pessoa jurídica. Misericórdia igual a essa só na Estônia. A bolada protegida do Leão é uma fábula. Uns 350 bilhões de reais nas declarações de IR entregues no ano passado, segundo o economista Sérgio Gobetti, do Ipea.
Gobetti e seu colega de Ipea Rodrigo Orair começaram a se debruçar sobre as estatísticas da Receita a partir de 2015 e logo constataram que, graças à isenção fiscal para lucros e dividendos, o Brasil é um paraíso para os super-ricos, um subgrupo da casta do 1% formado por umas 70 mil pessoas.
As conclusões da dupla foram publicadas em 2016 pelo PNUD, aquela agência das Nações Unidas que possui um ranking anual da desigualdade no qual o Brasil figura na 10a pior posição. “O que realmente chama atenção é que o meio milésimo mais rico concentra 8,5% da renda, nível superior ao da Colômbia (5,4%), que é um país extremamente desigual, quase três vezes maior que o do Uruguai (3,3%) e o do Reino Unido (3,4%), e cinco vezes maior que o da Noruega (1,7%)”, diz o estudo.
“Cerca de dois terços da renda dos super-ricos (meio milésimo da população) estão isentos de qualquer incidência tributária, proporção superior a qualquer outra faixa de rendimentos. O resultado é que a alíquota efetiva média paga pelos super-ricos chega a apenas 7%, enquanto a média nos estratos intermediários dos declarantes do Imposto de Renda chega a 12%.”
Entre os presidenciáveis que estão em campo, dois têm prometido taxar lucros e dividendos, caso sejam eleitos, Ciro Gomes, do PDT, e Guilherme Boulos, do PSOL. A dupla costuma citar os donos do Itaú Unibanco como exemplos de situação inaceitável. Nos últimos cinco anos, um período em que o PIB andou para trás, os três clãs que controlam o banco, as famílias Setubal, Moreira Salles e Vilela, receberam 9 bilhões de reais em dividendos.
Tudo devidamente isento de IRPF. Em uma entrevista no fim de maio à Rádio Jovem Pan de São Paulo, Boulos foi questionado sobre o “radicalismo” de suas propostas, como taxar mais os ricos, e reagiu assim: “Acho que extremista e radical é a realidade brasileira, extremismo é ter 6 bilionários que têm mais renda que 100 milhões de pessoas, extremismo é uma desigualdade brutal onde rico não paga imposto e pobre paga”.
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Esses bilionários aí citados são o suprassumo, o crème de la crème, da turma brasileira do 1%. Em janeiro, às vésperas de outro convescote da elite global em Davos, nos Alpes suíços, a Oxfam, uma rede 20 organizações atuante em 90 países, divulgou mais um relatório sobre concentração de renda no mundo. Com base em estudos do bancão Credit Suisse e de dados compilados pela revista Forbes, a Oxfam informou que havia 2.043 bilionários no mundo no ano passado, dos quais 43 eram brasileiros (12 a mais do que em 2016).
As fortunas nacionais tinham no pelotão de frente o empresário Jorge Paulo Leman, dono de 27 bilhões de dólares, e seus sócios de AmBev Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, o banqueiro Joseph Safra, o jovem Eduardo Saverin, do Facebook, a família Moreira Salles, do Itaú Unibanco, os irmãos Marinho, Roberto Irineu, João Roberto e José Roberto, trio das Organizações Globo.
Juntos, os cinco primeiros do ranking (Leman, Safra, Telles, Sicupira e Saverin) controlavam o mesmo que a metade mais pobre do País, 100 milhões de pessoas. Até 2016, eram seis, como Boulos disse à Jovem Pan.
Outro estudo da Oxfam sobre o Brasil, “A Distância Que nos Une”, de setembro de 2017, mostrava um exemplo um pouco mais concreto de concentração de riqueza no País. Na cidade de São Paulo, 25% de todos os imóveis registrados estão nas mãos de 1% dos proprietários, um total de 22,4 mil pessoas.
Quando se vê a mesma situação a partir do valor dos imóveis, a concentração é ainda maior. O 1% controla 45%, cada indivíduo do 1% possui, em média, 34 milhões de reais em imóveis. Um novo documento, divulgado na quinta-feira 21, trouxe mais uma ilustração. Esse documento mostra como os supermercados têm esmagado os pequenos produtores rurais fornecedores de comida vendida nas gôndolas.
Hoje em dia, de cada quatro copos de suco de laranja consumidos no mundo, um sai do Brasil. O preço desse produto encareceu mais de 50% nos supermercados norte-americanos e europeus desde a década de 1990, mas o valor recebido pelos camponeses brasileiros equivale a apenas 4% do preço final.
Diante disso tudo, será que a turma do 1% topa abrir mão de seus privilégios para que a imensa maioria dos milhões de brasileiros tenha uma vida mais digna? Uma das pioneiras mundiais em estudos sobre desigualdades e atualmente vice-presidente do Conselho Internacional de Ciências Sociais, a socióloga mineira Elisa Pereira Reis, costuma dizer que, historicamente, as elites do Brasil, como também as da África do Sul, das Filipinas, de Bangladesh e do Haiti, enxergam que são afetadas por problemas causados pela pobreza e a desigualdade, mas preferem se proteger de forma individual, gastando com muros, alarmes e segurança, em vez de apoiar políticas públicas que contornem a situação.
Em sua tese sobre o 1%, Pedro Herculano escreve que “não há exemplo de país que tenha saído do nosso patamar de concentração no topo e conseguido, em condições democráticas normais, reduzi-la de forma progressiva e suave para níveis franceses ou alemães, sem rupturas ou sobressaltos. Na melhor das hipóteses, teremos de inventar algo aparentemente inédito, caso esse seja um objetivo político desejado”.
E na pior das hipóteses? “Em outros países, as elites não aceitaram pacificamente pagar mais impostos. Foi um processo caótico e violento muitas vezes”, comentou Piketty ao vir para cá em setembro. “Espero que o Brasil tenha mais sorte e possa fazer isso sem passar por choques traumáticos como as guerras.”