O QUE É IDEOLOGIA, SEGUNDO MARILENA CHAUÍ!

O QUE É IDEOLOGIA, SEGUNDO MARILENA CHAUÍ

Ideologia: um mascaramento da realidade social que permite a legitimação da exploração e da dominação. Por intermédio dela, tomamos o falso por verdadeiro, o injusto por justo. Como ocorre essa ilusão, essa fabricação de uma história imaginária? Qual sua origem? Quais seus mecanismos, seus fins e efeitos sociais, econômicos e políticos?” (Contra Capa).
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“Ora, o real não é um dado sensível nem um dado intelectual, mas é um processo, um movimento temporal da constituição dos seres e de suas significações, e esse processo depende fundamentalmente do modo como os homens se relacionam entre si e com a natureza. (p. 19).
Essas relações entre os homens e deles com a natureza constituem as relações sociais como algo produzido pelos próprios homens, ainda que estes não tenham consciência de serem seus únicos autores. (p.19).
É, portanto, das relações sociais que precisamos partir para compreender o quê, como e por que os homens agem e pensam de maneiras determinadas, sendo capazes de atribuir sentido a tais relações, de conservá-las ou transformá-las. (pp. 19 e 20).
Trata-se, (...), de compreender a própria origem das relações sociais, de suas diferenças temporais, em uma palavra, de encará-las como processos históricos. (p. 20).
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A história não é sucessão de fatos no tempo, não é progresso das idéias, mas o modo como homens determinados em condições determinadas criam os meios e a formas de sua existência social, reproduzem ou transformam essa existência social que é econômica, política e cultural. (p. 20).
A história é práxis (no grego, práxis significa um modo de agir no qual o agente, sua ação e o produto de sua ação são termos intrinsecamente ligados e dependentes uns dos outros, não sendo possível separá-los). (p. 20).
Nesta perspectiva, a história é o real e o real é o movimento incessante pelo qual os homens, em condições que nem sempre foram escolhidas por eles, instauram um modo de sociabilidade e procuram fixá-lo em instituições determinadas (família, condições de trabalho, relações políticas, instituições religiosas, tipos de educação, formas de arte, transmissão dos costumes, língua, etc.). (pp. 20 e 21)
Além de procurar fixar seu modo de sociabilidade através de instituições determinadas, os homens produzem idéias ou representações pelas quais procuram explicar e compreender sua própria vida individual, social, suas relações com a natureza e com o sobrenatural. (p. 21).
Essas ideais ou representações, no entanto, tenderão a esconder dos homens o modo real como suas relações sociais foram produzidas e a origem das formas sociais de exploração econômica e de dominação política. (p. 21).
Esse ocultamento da realidade social chama-se ideologia. (p. 21).
Por seu intermédio, os homens legitimam as condições sociais de exploração e de dominação, fazendo com que pareçam verdadeiras e justas. Enfim, também é um aspecto fundamental da existência histórica dos homens a ação pela qual podem ou reproduzir as relações sociais existentes ou transformá-las, seja de maneira radical (quando fazem uma revolução), seja de maneira parcial (quando fazem reformas). (p. 21).
Nossa tarefa será, pois, a de compreender por que a ideologia é possível: qual sua origem, quais seus fins, quais seus mecanismos e quais seus efeitos históricos, isto é, sociais, econômicos, políticos e culturais.” (p. 21).
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“De maneira esquemática (e, portanto, muito grosseira), podemos caracterizar a obra hegeliana como: (p. 35).
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ALIENAÇÃO
6) um trabalho filosófico que procura dar conta do fenômeno da alienação. Em geral, considera-se que o exterior (as coisas naturais, os produtos do trabalho, a sociedade, etc.) é algo positivo em si e que se distingue do interior (a consciência, o sujeito). Hegel mostra que o exterior e o interior são as duas faces do Espírito, são dois momentos da vida e do trabalho do Espírito. Essas duas faces aparecem como separadas, mas essa separação foi produzida pelo próprio Espírito, ao se exteriorizar nas obras e ao se interiorizar compreendendo sua produção.
Ora, quando a interiorização não ocorre, isto é, quando o sujeito não se reconhece como produtor das obras e como sujeito da história, mas toma as obras e a história como forças estranhas, exteriores, alheias a ele e que o dominam e perseguem, temos o que Hegel designa como alienação. (pp. 40 e 41).
Esta é a impossibilidade do sujeito histórico identificar-se com sua obra, tomando-a como um poder separado dele, ameaçador e estranho. (p. 41).
7) um trabalho filosófico que diferencia imediato e mediato, abstrato e concreto, aparência e ser.
Imediato, abstrato e aparência são sinônimos; não significam irrealidade e falsidade, mas sim o modo pelo qual uma realidade se oferece como algo dado, como um fato positivo dotado de características próprias e já prontas, ordenadas, classificadas e relacionadas por nosso entendimento.
Mediato, concreto e ser são sinônimos: referem-se ao processo de constituição de uma realidade através de mediações contraditórias.
O conhecimento da realidade exige que diferenciemos o modo como uma realidade aparece e o modo como é concretamente produzida.
Imediato, abstrato e aparência são momentos do trabalho histórico negados pela mediação, pelo concreto e pelo ser.
Isto significa que esses termos são contraditórios e reais. Sua síntese é efetuada pelo espírito. Essa síntese é o que Hegel denomina: conceito. (p. 41).
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A unidade ou síntese do proprietário, do sujeito e do membro da família chama-se, agora, o cidadão. Ora, entre os cidadãos (ou seja, entre as classes sociais) existem conflitos e se reabre a contradição. Agora, a contradição se estabelece entre os interesses de cada classe social e os das outras, e entre os interesses dos próprios membros de uma classe social. Ou seja, ressurge, de modo novo, a contradição entre o privado (cada classe) e o público (todas as classes). A resolução dessa contradição e feita pelo Estado. (p. 45).
O Estado constitui a unidade final. Ele sintetiza numa realidade coletiva a totalidade dos interesses individuais, familiares, sociais, privados e públicos. Somente nele o cidadão se torna verdadeiramente real e somente nele se define a existência social e moral dos homens. O Estado é o Espírito Objetivo. (pp. 45 e 46).
O Estado é uma comunidade. Mas difere da comunidade familiar e da comunidade das classes sociais (suas corporações), porque não possui nenhum interesse particular, mas apenas interesses comuns e gerais de todos.
É uma comunidade universal (isto é, seus interesses não sendo particulares, desta ou daquela família, deste ou daquele indivíduo, desta ou daquela classe, são interesses universais).
O Estado não é, pois, um dado imediato da vida social, mas um produto da sociedade enquanto Espírito Subjetivo que busca tornar-se Espírito Objetivo. O Estado é a idéia política por excelência, uma das mais altas sínteses do Espírito. Nele se harmonizam os interesses da pessoa (proprietário), do sujeito (moral) e do cidadão (sociedade e política). (p. 46).
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“Da concepção hegeliana, Marx conserva o conceito de dialética como movimento interno de produção da realidade cujo motor é a contradição.
Porém Marx demonstra que a contradição não é a do Espírito consigo mesmo, entre sua face subjetiva e sua face objetivo, entre sua exteriorização em obras e sua interiorização em idéias: a contradição se estabelece entre homens reais em condições históricas e sociais reais e se chama luta de classes. (pp. 46 e 47).
A história não é, portanto, o processo pelo qual o Espírito toma posse de si mesmo, não é história das realizações do Espírito.
A história é história do modo real como os homens reais produzem suas condições reais de existência.
É história do modo como se reproduzem a si mesmos (pelo consumo direto ou imediato dos bens naturais e pela procriação), como produzem e reproduzem suas relações com a natureza (pelo trabalho), do modo como produzem e reproduzem suas relações sociais (pela divisão social do trabalho e pela forma de propriedade, que constituem as formas das relações de produção.
É também história do modo como os homens interpretam todas essas relações, seja numa interpretação imaginária, como na ideologia, seja numa interpretação real, pelo conhecimento da história que produziu ou produz tais relações.” (p. 47).
“Da concepção hegeliana, Marx também conserva as diferenças entre abstrato/concreto, imediato/mediato, aparecer/ser.
Tanto assim que define o concreto como “unidade do diverso, síntese de muitas determinações”, devendo-se entender o conceito de determinação não como sinônimo de conjunto de propriedades ou de características, mas como os resultados que constituem uma realidade no processo pelo qual ela é produzida. (pp. 47 e 48).
Ou seja, enquanto o conceito de “propriedades” ou de “características" pressupõe um objeto como dado e acabado, o conceito de “determinação” pressupõe uma realidade como um processo temporal.” (p. 47).
“Na Contribuição à Crítica da Economia Política e n’O Capital, Marx afirma que o método histórico-dialético deve partir do que é mais abstrato ou mais simples ou mais imediato (o que se oferece à observação), percorrer o processo contraditório de sua constituição real e atingir o concreto como um sistema de mediações e de relações cada vez mais complexas e que nunca estão dadas à observação.
Trata-se sempre de começar pelo aparecer social e chegar, pelas mediações reais, ao ser social.
Trata-se também de mostrar como o ser do social determina o modo como este aparece aos homens.” (p. 48).
“Assim, por exemplo, a mercadoria será considerada a forma mais simples e mais abstrata do modo de produção capitalista, o qual aparece imediatamente como uma imensa produção, acumulação, distribuição e consumo de mercadorias. (destaques nossos).
A análise da mercadoria revelará, por exemplo, que há mais mercadoria do que supúnhamos à primeira vista, pois um elemento fundamental, do modo de produção capitalista, o trabalhador, que aparece como um ser humano, é, na verdade, uma mercadoria – ele vende no mercado sua força-de-trabalho. (p. 48). (destaques nossos).
Por outro lado, quando compreendemos qual é a gênese ou origem da mercadoria (as mediações que a constituem), compreendemos que não se trata de uma coisa tão simples como parecia, pois ela é, ao mesmo tempo, valor de uso e valor de troca. Ela não é uma “coisa”, mas um valor. Como valor de uso, parece valer por sua utilidade, e, como valor de troca, parece valer por seu preço no mercado.
Ora, as análises de Marx revelam que o valor de uso é inteiramente determinado pelas condições do mercado, de sorte que o valor de troca comanda o valor de uso. Ora, o valor de troca não é determinado pelo preço como parece à primeira vista. Isto é, o valor da mercadoria não surge no momento em que ela começa a circular no mercado e a ser consumida. Seu valor é produzido num outro lugar: ele é determinado pela quantidade de tempo de trabalho necessário para produzi-la. Esse tempo inclui não só o tempo gasto diretamente na fabricação dessa mercadoria, mas inclui o tempo de trabalho necessário para produzir as máquinas, o tempo para extrair e para transportar a matéria prima, etc. E o que são todos esses “tempos”? São tempos de trabalho da sociedade. Também entra no preço da mercadoria, como parte do chamado custo de produção, o salário pago pelo tempo de trabalho do trabalhador que fabrica essa mercadoria, pagamento que é feito para que ele se alimente, se aloje, se vista, se transporte e se reproduza procriando filhos para o mesmo trabalho de produzir mercadorias. (p. 49). (destaques nossos).
Vemos, assim, que o valor de troca da mercadoria, o seu preço, envolve todos os outros tempos anteriores e posteriores ao tempo necessário para produzi-la e distribuí-la. No preço da mercadoria está incluído o gasto (físico, psíquico e econômico) para produzi-la. Ela não é uma coisa, mas trabalho social concentrado.
Como estabelecer o valor de troca entre um metro de linho e um quilo de ferro? Ser “valor” é “valer por algo”, é ser equivalente. Como estabelecer a equivalência entre o metro de linho e o quilo de ferro? Por sua realidade material são heterogêneos, por seu valor de uso também são heterogêneos. Onde encontrar uma medida comum para dizermos que um metro de linho equivale a um quilo de ferro? A equivalência vai ser estabelecida medindo o tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-los. Ou seja, o tempo de trabalho que envolve toda a sociedade fundará o valor de troca. Vemos, portanto, que o preço da mercadoria no comércio é uma aparência, pois a determinação do valor dessa mercadoria depende do tempo de trabalho de sua produção e esse tempo envolve o dos demais trabalhos que tornaram possível a fabricação dessa mercadoria.
Ora, sabemos que o produtor da mercadoria recebe um salário, que é o preço de seu tempo de trabalho, pois este também é uma mercadoria. Suponhamos, então, que para fabricar um metro de linho e para extrair um quilo do ferro, os trabalhadores precisem de 8 horas de trabalho. Suponhamos que o preço desses produtos no mercado seja de Cr$ 16,00. Diremos, então, que cada hora de trabalho equivale a Cr$ 2,00. Porém, quando vamos verificar qual é o salário desses trabalhadores, descobrimos que não recebem Cr$ 16,00, mas sim Cr$ 8,00. Há, portanto, 4 horas de trabalho que não foram pagas, apesar de estarem incluídas no preço final da mercadoria. Essas 4 horas de trabalho não pago constituem a mais-valia, o lucro do proprietário da mina de ferro ou do proprietário da fábrica de linho. Formam seu capital. A origem do capital, portanto, é o trabalho não pago. Graças à mais-valia, a mercadoria não é um valor de uso e um valor de troca qualquer, mas um valor capitalista. (pp. 50-51). (destaques nossos).
Vemos, pois, que a mercadoria não é uma coisa (como aparece), mas trabalho social, tempo de trabalho. E não é qualquer tempo de trabalho, mas tempo de trabalho não pago, portanto a mercadoria oculta o fato de que há exploração econômica.” (p. 51). (destaques nossos).
“Estamos longe, agora, do aparecer socialestamos diante do modo de constituição real do sistema capitalista. Passamos de algo abstrato e imediato a algo concreto e mediato: passamos da mercadoria como coisa à mercadoria como valor de uso e de troca, destes à mercadoria como tempo de trabalho social, deste à mercadoria como trabalho não pago e, portanto, à forma de relação social entre o proprietário privado dos meios de produção e o trabalhador por ele explorado.” (pp. 51-52). (destaques nossos).
“Da concepção hegeliana, Marx também conserva a afirmação de que a realidade é histórica e que por isso é reflexionante., ou seja, realiza a reflexão. Em outras palavras, a realidade é um movimento de contradições que produzem e reproduzem o modo de existência social dos homens, e que, realizando uma volta completa sobre si mesma, pode conduzir à transformação desse modo de existência social.
Ora, aqui surge um problema. Em Hegel não havia a menor dificuldade para considerar o real como capaz de reflexão, pois o real era o Espírito, o Espírito era sujeito e todo sujeito é sujeito porque capaz de reflexão. Mas a dialética marxista não é espiritualista ou idealista, e sim materialista. Ora, a matéria, como provam as ciências naturais, é algo inerte, constituído por relações mecânicas de causa e efeito, de partes exteriores umas às outras, sendo inconcebível supor que haja interioridade naquilo que é material. E reflexão supõe uma interiorização, uma volta sobre si e para dentro de si. Como colocar reflexão na matéria? É que a matéria de que fala Marx não é a matéria física ou química, a coisa inerte não possui atividade interna. A matéria de que fala Marx é a matéria social, isto é, as relações sociais entendidas como relações de produção, ou seja, como o modo pelo qual os homens produzem e reproduzem suas condições materiais de existência e o modo como pensam e interpretam essas relações. A matéria do materialismo histórico-dialético são os homens produzindo, em condições determinadas, seu modo de se reproduzirem como homens e de organizarem suas vidas como homens. Assim sendo, a reflexão não é impossível. Basta que percebamos que o sujeito da história, seu agente, embora não seja o Espírito, é sujeito: são as classes sociais em luta. (pp. 52-53). (destaques nossos).
AS classes sociais não são coisas nem idéias, mas são relações sociais determinadas pelo modo como os homens, na produção de suas condições materiais de existência, se dividem no trabalho, instauram formas determinadas da propriedade, reproduzem e legitimam aquela divisão e aquelas formas por meio de instituições sociais e políticas, representam para si mesmos o significado dessas instituições através de sistemas determinados de idéias que exprimem e escondem o significado real de suas relações. As classes sociais são o fazer-se classe dos indivíduos em suas atividades econômicas, políticas e culturais. (p. 53). (destaques nossos).
A dialética é materialista porque seu motor não é o trabalho do Espírito, mas o trabalho material propriamente dito: o trabalho como relação dos homens com a Natureza, para negar as coisas naturais enquanto naturais, transformado-as em coisas humanizadas ou culturais, produtos do trabalho. Mas o que interessa realmente à dialética materialista não é a simples relação dos homens com a Natureza através (pela mediação) do trabalho. O que interessa é a divisão social do trabalho e, portanto, a relação entre os próprios homens através do trabalho dividido. Essa divisão começa no trabalho sexual de procriação, prossegue na divisão de tarefas no interior da família, continua como divisão entre pastoreio e agricultura e entre estes e o comércio, caminha separando proprietários das condições do trabalho e trabalhadores, avança como separação entre cidade e campo e entre trabalho manual e trabalho intelectual. Essas formas da divisão social do trabalho, ao mesmo tempo em que determinam a divisão entre proprietários e não proprietários, entre trabalhadores e pensadores, determinam a formação das classes sociais e, finalmente, a separação entre sociedade e política, isto é, entre instituições sociais e Estado. (pp. 53-54). (destaques nossos).
O motor da dialética materialista é a forma determinada das condições de trabalho, isto é, das condições de produção e reprodução da existência social do homens, forma que é sempre determinada por uma contradição interna, isto é, pela luta de classes ou pelo antagonismo entre proprietários das condições de trabalho e não proprietários (servos, escravos, trabalhadores assalariados).” (p. 54). (destaques nossos).
Enfim, da concepção hegeliana Marx também conserva o conceito de alienação, tendo como referência as análises de Feuerbach sobre a alienação religiosa. Para Feuerbach, a religião é a forma suprema da alienação humana, na medida em que ela é a projeção da essência humana num Ser superior, estranho e separado dos homens, um poder que os domina e governa porque não reconhecem que foi criado por eles próprios. (pp. 54-55). (destaques nossos).
ALIENAÇÃO
Todavia, Marx imprimirá grandes modificações nesse conceito. Contra Hegel, dirá que a alienação não é do Espírito, mas dos homens reais em condições reais. Contra Feuerbach dirá, em primeiro lugar, que não há uma “essência humana”, pois o homem é um ser histórico que se faz diferentemente em condições históricas diferentes; e, em segundo lugar, que a alienação religiosa na é a forma fundamental da alienação, mas apenas um efeito de uma outra alienação real, que é a alienação do trabalho. O trabalho alienado é aquele no qual o produtor não pode reconhecer-se no produto de seu trabalho, porque as condições desse trabalho, suas finalidades reais e seu valor não dependem do próprio trabalhador, mas do proprietário das condições do trabalho. Como se não bastasse, o fato de que o produtor não se reconheça no seu próprio produto, não o veja como resultado de seu trabalho, faz com que o produto surja como um poder separado do produtor e como um poder que o domina e ameaça. (p. 55). (destaques nossos).
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FETICHISMO DA MERCADORIA
Que é a mercadoria? Trabalho humano concentrado e não pago. Por depender da forma da propriedade privada capitalista, que separa o trabalhador dos meios, instrumentos e condições da produção, a mercadoria é uma realidade social. No entanto, o trabalhador e os demais membros da sociedade capitalista não percebem que a mercadoria, por ser produto do trabalho, exprime relações sociais determinadas. Percebem a mercadoria como uma coisa dotada de valor de uso (utilidade) e de valor de troca (preço). Ela é percebida e consumida como uma simples coisa. (pp. 55-56). (destaques nossos).
Assim, em lugar da mercadoria aparecer como resultado de relações sociais enquanto relações de produção, ela aparece como um bem que se compra e se consome. Aparece como valendo por si mesma e em si mesma, como se fosse um dom natural das próprias coisas. Besta entrarmos num supermercado nos sábados à tarde para vermos o espetáculo de pessoas tirando de prateleiras mercadorias como se estivessem apanhando frutas numa árvore, para entendermos como a mercadoria desapareceu enquanto trabalho concentrado e não pago. (p. 56). (destaques nossos).
E como o dinheiro também é mercadoria (aquela mercadoria que serve para estabelecer um equivalente social geral para todas as outras mercadorias), tem início uma relação fantástica das mercadorias umas com as outras (a mercadoria Cr$ 18,00 se relaciona com a mercadoria sabonete Gessy, a mercadoria Cr$ 5.000,00 se relaciona com a mercadoria menino-que-faz-pacotes, etc. etc.). As coisas-mercadorias começam, pois, a se relacionar umas com as outras como se fossem sujeitos sociais dotados de vida própria (um apartamento estilo “mediterrâneo” vale um “modo de viver”, um cigarro vale “um estilo de vida”, um automóvel zero km. vale “um jeito de viver”, uma bebida vale “a alegria de viver”, uma calça vale “uma vida jovem”, etc., etc.). E os homens-mercadorias aparecem como coisas (um nordestino vale Cr$ 20,00 à hora, na construção civil, um médico vale Cr$ 2.000,00 à hora, no seu consultório, etc., etc.). A mercadoria passa a ter vida própria indo da fábrica à loja, da loja à casa, como se caminhasse sobre seus próprios pés. (pp. 56-57). (destaques nossos).
O primeiro momento do fetichismo é este: a mercadoria é um fetiche (no sentido religioso da palavra), uma coisa que existe em si e por si.
O segundo momento do fetichismo, mais importante, é o seguinte: assim como o fetiche religioso (deuses, objetos, símbolos, gestos) tem poder sobre seus crentes ou adoradores, os domina como uma força estranha, assim também a mercadoria. O mundo se transforma numa imensa fantasmagoria. (p. 57). (destaques nossos).
Como, então, aparecem as relações sociais de trabalho? Como relações materiais entre sujeitos humanos e como relações sociais entre coisas. E Marx afirma que as relações sociais aparecem tais como efetivamente são. Que significa dizer que a aparência social é a própria realidade social? Significa mostrar que no modo de produção capitalista os homens realmente são transformados em coisas e as coisas são realmente transformadas em “gente”. (pp. 57-58). (destaques nossos).
Com efeito, o trabalhador passa a ser uma coisa denominada força de trabalho que recebe uma outra coisa chamada salário. O produto trabalho passa a ser uma coisa chamada mercadoria que possui uma outra coisa, isto é, um preço. O proprietário das condições de trabalho e dos produtos do trabalho passa a ser uma coisa chamada capital, que possui uma outra coisa, a capacidade de ter lucros. Desaparecem os seres humanos, ou melhor, eles existem sob a forma de coisas (donde o termo usado por Lucaks: reificação; do latim: res, que signisifca coisa).
Em contrapartida, as coisas produzidas e as relações entre elas (produção, distribuição, circulação, consumo) se humanizam e passam a ter relações sociais. Produzir, distribuir, comerciar, acumular, consumir, investir, poupar, trabalhar, todas essas atividades econômicas começam a funcionar e a operar sozinhas, por si mesmas, com uma lógica que emana delas próprias, independentemente dos homens que as realizam. Os homens se tornam os suportes dessas operações, instrumentos delas.
Alienação, reificação, fetichismo: é esse processo fantástico no qual as atividades humanas começam a se realizar como se fossem autônomas ou independentes dos homens, sem que estes possam controlá-las. São ameaçados e perseguidos por elas. Tornam-se objetos delas. Basta pensar no trabalhador submetido às “vontades” da máquina regulada por um “cérebro eletrônico”, ou no indivíduo que, jogando na bolsa de valores de São Paulo, tem sua vida determinada pela falência de um banco numa cidade do interior da Europa, de que nunca ouviu falar. (pp. 58-59). (destaques nossos).
Quando Marx afirma que as relações sociais capitalistas aparecem tais como são, que o aparecer e o ser da sociedade capitalista se identificaram, ele o diz porque houve uma gigantesca inversão na qual o social vira coisa e a coisa vira social. É isto a realidade capitalista.” (p. 59). (destaques nossos).
“Uma pergunta nos vem agora: por que os homens conservam essa realidade? Como se explica que não percebam a reificação? Como entender que o trabalhador não se revolte contra uma situação na qual não só lhe foi roubada a condição humana, mas ainda é explorado naquilo que faz, pois seu trabalho não pago (a mais-valia) é o que mantém a existência do capital e do capitalista? Como explicar que essa realidade nos apareça como natural, normal, racional, aceitável? De onde vem o obscurecimento da existência das contradições e dos antagonismos sociais? De onde vem a não percepção da existências das classes sociais, uma das quais vive da exploração e dominação das outras? A resposta a essas questões nos conduz diretamente ao fenômeno da ideologia.” (p. 59). (destaques nossos).
“Nas considerações sobre “a ideologia em geral”, Marx e Engels determinam o momento de surgimento das ideologias no instante em que a divisão social do trabalho separa trabalho material ou manual e trabalho intelectual. Para compreendermos por que esta separação aparecerá como independência das idéias com relação ao real e, posteriormente, como privilégio destas sobre aquele, precisamos acompanhar em linhas gerais o processo da divisão social do trabalho, tal como Marx e Engels o expõem na Ideologia Alemã.
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Os homens, escrevem Engels e Marx, se distinguem dos animais não porque tenham consciência (como dizem os ideólogos burgueses), mas porque produzem as condições de sua própria existência material e espiritual. São o que produzem e são como produzem.
Essa produção das condições de existência depende de condições naturais (as do meio ambiente e as biofisiológicas do organismo humano) e do aumento da população pela procriação. Esta, além de ser natural, já é também social, pois determina a forma de intercâmbio e de cooperação entre os homens, forma esta que, por sua vez, determina a forma da produção na divisão do trabalho. (p. 60). (destaques nossos).
A produção e reprodução das condições de existência através do trabalho (relação com a natureza), da divisão do trabalho (relação de intercâmbio e de cooperação entre os homens), da procriação (sexualidade e família), constituem em cada época o conjunto das forças produtivas que determinam e são determinadas pela divisão social do trabalho. Essa divisão, que já se inicia na própria família, conduz à separação entre pastoreio e agricultura, entre ambos e a indústria e entre os três e o comércio. Estas separações conduzem à separação entre cidade e campo, ao mesmo tempo em que, no interior de cada esfera de atividade, novas formas de divisão do trabalho se desenvolvem. (pp. 60-61). (destaques nossos).
A divisão social do trabalho não é uma simples divisão de tarefas, mas a manifestação de algo fundamental na existência histórica: a existência de diferentes formas da propriedade, isto é, a divisão entre as condições e instrumentos ou meios do trabalho e o próprio trabalho, incidindo, por sua vez, na desigual distribuição do produto do trabalho. Numa palavra: a divisão social do trabalho engendra e é engendrada pela desigualdade social ou pela forma da propriedade. (p. 61). (destaques nossos).
A propriedade começa como propriedade tribal e a estrutura social é a de uma família ampliada e hierarquizada por tarefas, funções, poderes e consumo.
 A segunda forma da propriedade é a comunal ou estatal, isto é, propriedade privada coletiva dos cidadãos ativos do Estado (Grécia, Roma, por exemplo), e a estrutura da sociedade é constituída pela divisão entre senhores (cidadãos) e escravos. Esta separação permite aos senhores se distanciarem da terra e dos ofícios, que ficam a cargo dos escravos – esta separação leva os senhores a viverem nas cidades e a partir daí se estabelece a separação entre a cidade e o campo, de onde resultarão lutas sociais e políticas.
 A terceira forma da propriedade é a feudal ou estamental e que se apresenta como propriedade privada territorial trabalhada por servos da gleba, e como propriedade dos instrumentos de trabalho pelos artesãos livres ou oficiais das corporações que vivem nos burgos (cidades medievais). A estrutura da sociedade cria os proprietários como nobreza feudal e como oficiais livres dos burgos, e os trabalhadores como servos da terra enfeudada e como aprendizes nas corporações dos burgos. Junto a eles, há uma figura social intermediária: o comerciante.
 As transformações dessa estrutura social, ou seja, da forma da propriedade e da divisão do trabalho, dá origem à forma da propriedade que conhecemos: a propriedade privada capitalista. Aqui a divisão social do trabalho alcança seu ápice: de um lado, os proprietários privados do capital (portanto dos meios, condições e instrumentos da produção e da distribuição), que são também os proprietários do produto do trabalho, e, de outro lado, a massa dos assalariados ou dos trabalhadores despossuídos, que dispõem exclusivamente de sua força de trabalho, que vendem como mercadoria ao proprietário do capital. (pp. 61-62). (destaques nossos).
(...) a passagem dessas formas da propriedade ou da divisão social do trabalho, cujas transformações constituem o solo real da história real. (...) a relação de produção (é definida) a partir do processo de constituição das forças produtivas na divisão social do trabalho, (...) ou seja, modo de produção. Este não é um dado, mas uma forma social criada pelas ações econômicas e políticas dos agentes sociais (independente de sua vontade e de sua consciência). É o sistema das relações de produção e de suas representações por meio de categorias jurídicas, políticas, culturais, etc. (p. 63). (destaques nossos).
A consciência, (...) estará indissoluvelmente ligada às condições materiais de produção da existência, das formas de intercâmbio e de cooperação, e as idéias nascem da atividade material. Isto não significa, porém, que os homens representem nessas idéias a realidade de suas condições materiais, mas, ao contrário, representam o modo como essa realidade lhes aparece na experiência imediata. Por esse motivo, as idéias tendem a ser uma representação invertida do processo real, colocando como origem ou como causa aquilo que é efeito ou conseqüência, e vice-versa. (pp. 64-65). (destaques nossos).
(...)
Também as relações sociais são representadas imediatamente pelas idéias de maneira invertida. Com efeito, à medida que uma forma determinada da divisão social do trabalho se estabiliza, se fixa e se repete, cada indivíduo passa a ter uma atividade determinada e exclusiva que lhe é atribuída pelo conjunto das relações sociais, pelo estágio das forças produtivas e, evidentemente, pela forma da propriedade. (...) A partir desse momento, todo o conjunto das relações sociais aparece nas idéias como se fossem coisas em si, existentes por si mesmas e não como conseqüência das relações humanas. Pelo contrário, as ações humanas são representadas como decorrentes da sociedade, que é vista como existindo por si mesma e dominando os homens. Se a Natureza, pelas idéias religiosas, se “humaniza” ao ser divinizada, em contrapartida a Sociedade se “naturaliza”, isto é, aparece como um dado natural, necessário e eterno, e não como resultado da práxis humana. “Esta fixação da atividade social – esta consolidação de nosso próprio produto num poder objetivo superior a nós, que escapa de nosso controle, que contraria nossas expectativas e reduz a nada nossos cálculos – é um dos momentos fundamentais do desenvolvimento histórico que até aqui tivemos”.” (pp. 64-65). (destaques nossos).
ALIENAÇÃO
“A forma inicial da consciência é, portanto, a ALIENAÇÃO. E porque a alienação é a manifestação inicial da consciência, A IDEOLOGIA SERÁ POSSÍVEL: as idéias serão tomadas como anteriores à práxis, como superiores e exteriores a ela, como um poder espiritual autônomo que comanda a ação material dos homens.”
“A divisão social do trabalho torna-se completa quando o trabalho material e o espiritual se separam.
Somente com essa divisão “a consciência pode realmente imaginar ser diferente da consciência da práxis existente, representar realmente algo, sem representar algo real. Desde esse instante, a consciência está em condições de emancipar-se do mundo e entregar-se à construção da teoria, da teologia, da filosofia, da moral, etc., ‘puras’.
Nasce agora a IDEOLOGIA propriamente dita, isto é, o sistema ordenado de idéias ou representações e das normas e regras como algo separado e independente das condições materiais, visto que seus produtores – os teóricos, os ideólogos, os intelectuais – não estão diretamente vinculados à produção material das condições de existência. E, sem perceber, exprimem essa desvinculação ou separação através de suas idéias. Ou seja: as idéias aparecem como produzidas somente pelo pensamento, porque os seus pensadores estão distantes da produção material. Assim, em lugar de aparecer que os pensadores estão distanciados do mundo material e por isso suas idéias revelam tal separação, o que aparece é que as idéias é que estão separadas do mundo e o explicam. As idéias não aparecem como produtos do pensamento de homens determinados – aqueles que estão fora da produção material direta – mas como entidades autônomas descobertas por tais homens. (pp. 65-66). (destaques nossos).
As idéias podem parecer estar em contradição com as relações sociais existentes, com o mundo material dado, porém essa contradição não se estabelece realmente entre as idéias e o mundo, mas é uma conseqüência do fato de que o mundo social é contraditório. Porém, como as contradições reais permanecem ocultas (são as contradições entre as relações de produção ou as forças produtivas e as relações sociais), parece que a contradição real è aquela entre as idéias e o mundo. Assim, por exemplo, faz parte da ideologia burguesa afirmar que a educação é um direito de todos os homens. Ora, na realidade sabemos que isto não ocorre. Nossa tendência, então, será a de dizer que há uma contradição entre a idéia de educação e a realidade. Na verdade, porém, essa contradição existe porque simplesmente exprime, sem saber, uma outra: a contradição entre os que produzem a riqueza material e cultural com seu trabalho e aqueles que usufruem dessas riquezas, excluindo delas os produtores. Porque estes se encontram excluídos do direito de usufruir dos bens que produzem, estão excluídos da educação, que é um desses bens. Em geral, o pedreiro que faz a escola, o marceneiro que faz as carteiras, mesas e lousas, são analfabetos e não têm condições de enviar seus filhos para a escola que foi por eles produzida. Essa é a contradição real, da qual a contradição entre idéia de “direito de todos à educação” e uma sociedade de maioria analfabeta é apenas o efeito ou a conseqüência.” (pp. 66-67). (destaques nossos).
“Em suma, Engels e Marx consideram que os três aspectos que são condições para que haja história – força de produção, relações sociais e consciência – podem entrar e efetivamente entram em contradição como resultado da divisão social do trabalho material e intelectual porque, agora, o trabalho e a fruição, a produção e o consumo aparecem como realmente são, isto é, cabendo a indivíduos diferentes. Instalou-se para a própria consciência imediata dos homens a percepção da desigualdade social: uns pensam, outros trabalham; uns consomem, outros produzem e não podem consumir os produtos de seu trabalho.” (p. 67). (destaques nossos).
“Outra contradição mais aguda surge ainda: a contradição entre os interesses de um indivíduo ou de uma família particular e os interesses coletivos. No entanto, diferentemente de Hegel, Marx e Engels demonstram que tais interesses não são realmente coletivos ou comuns, mas apenas o sistema social de dependência recíproca dos indivíduos entre os quais o trabalho, os meios e condições do trabalho e os produtos do trabalho estão desigualmente distribuídos. (pp. 67-68). (destaques nossos).
Existem conflitos entre os proprietários e existem contradições entre os proprietários e os não proprietários. Há oposição entre os interesses dos proprietários e há contradição entre os interesses de todo os proprietários e os de todos os não proprietários. Os conflitos (entre proprietários) e a contradição (entre proprietários e não proprietários) aparecem para a consciência dos sujeitos sociais como se fossem conflitos entre o interesse particular e o interesse comum ou geral. Na realidade, porém, há antagonismos entre classes sociais particulares, pois ONDE HOUVER PROPRIEDADE PRIVADA NÃO PODE HAVER INTERESSE SOCIAL COMUM. (p. 68). (destaques nossos).
“É justamente desta contradição entre o interesse particular e o suposto interesse coletivo que este último toma, na qualidade de Estado, uma forma autônoma, separada dos reais interesses particulares e gerais e, ao mesmo tempo, na qualidade de comunidade ilusória, mas sempre sobre a base real dos laços existentes em cada conglomerado familiar ou tribal – tais como laços de sangue, linguagem, divisão do trabalho em maior escala e outros interesses – e sobretudo, como desenvolveremos adiante, baseada nas classes sociais já condicionadas pela divisão social do trabalho, que se isolam em cada um desses conglomerados humanos e entre as quais há uma que domina sobre as outras todas (...) O poder social, isto é, a força produtiva unificada multiplicada, que nasce da cooperação de vários indivíduos exigida pela divisão do trabalho, aparece para esses indivíduos não como seu próprio poder unificado, mas como uma força estranha situada fora deles, cuja origem e cujo destino ignoram e que, pelo contrário, percorre agora uma série particular de fases e de estágios de desenvolvimento, independente do querer e do agir dos homens e que, na verdade, dirige esse querer e esse agir.” (pp. 68-69). (Citação da autora e destaques nossos).
“Assim como da divisão entre trabalho material e intelectual nasce a suposição de uma autonomia das idéias, como se fossem ou como se tivessem uma realidade própria independentes dos homens, assim também, da separação entre os homens em classes sociais particulares com interesses particulares contraditórios, nasce a idéia de um interesse geral ou comum que se encarna numa instituição determinada: o Estado.
O Estado aparece como a realização do interesse geral (por isso Hegel dizia que o Estado era a universalidade da vida social), mas, na realidade, ele é a forma pela qual os interesses da parte mais forte e poderosa da sociedade (a classe dos proprietários) ganham a aparência de interesses de toda a sociedade. (p. 69). (destaques nossos).
O Estado não é um poder distinto da sociedade, que a ordena e regula para o interesse geral definido por ele próprio enquanto poder separado e acima das particularidades dos interesses de classe. Ele é a preservação dos interesses particulares da classe que domina a sociedade. Ele exprime na esfera política as relações de exploração que existem na esfera econômica.
O Estado é uma comunidade ilusória. Isto não quer dizer que seja falso, mas sim que ele aparece como comunidade porque é assim percebido pelos sujeitos sociais. Estes precisam dessa figura unificada e unificadora para conseguirem tolerar a existência das divisões sociais, escondendo que tais divisões permanecem através do Estado. O Estado é a expressão política da sociedade civil enquanto dividida em classes. Não é, como imaginava Hegel, a superação das contradições, mas a vitória de uma parte da sociedade sobre as outras. (p. 70). (destaques nossos).
Como, porém, o Estado não poderia realizar sua função apaziguadora e reguladora da sociedade (em benefício de uma classe) se aparecesse como realização de interesses particulares, ele precisa aparecer como uma forma muito especial de dominação: uma dominação impessoal e anônima, a dominação exercida através de um mecanismo impessoal que são as leis ou o Direito Civil. Graças às leis, o Estado aparece como um poder que não pertence a ninguém. Por isso, diz Marx, em lugar do Estado aparecer como poder social unificado, aparece como um poder desligado dos homens. Por isso também, em lugar de ser dirigido pelos homens, aparece como um poder cuja origem e finalidade permanecem secretos e que dirigem os homens. Enfim, como o Estado ganhou autonomia, ele parece ter sua própria história, suas fases e estágios próprios, sem nenhuma dependência da história social efetiva.” (pp. 70-71). (destaques nossos).
“Está aberto o caminho para a ideologia política que explicará a sociedade através das formas dos regimes políticos (aristocracia, monarquia, democracia, ditadura, anarquia) e que explicará a história pelas transformações do Estado (passagem de um regime político para outro).
A divisão social, que separa proprietários e destituídos, exploradores e explorados, que separa intelectuais e trabalhadores, sociedade civil e Estado, interesse privado e interesse geral; é uma situação que não será superada por meio de teorias, nem por uma transformação da consciência, visto que tais separações não foram produzidas pela teoria nem pela consciência, mas pelas relações sociais de produção e suas representações pensadas. (p. 71). (destaques nossos).
Assim, a transformação histórica capaz de ultrapassar essas divisões e as contradições que as sustentam depende de pressupostos (condições ou pré-condições) práticos e não teóricos. Esses pressupostos ou pré-condições práticos são:
1) surgimento da massa da humanidade como massa inteiramente destituída de propriedade e em contradição com um mundo da cultura e da riqueza produzido por essa massa que se encontra excluída da abundância por ela produzida;
            É fundamental, diz Marx, que haja total desenvolvimento das forças produtivas (capitalistas), isto é, que tenha sido produzido um mundo cultural e material abundante, pois, sem isso, a massa revolucionária teria que recomeçar o processo histórico partindo da carência e da escassez, da luta pela sobrevivência material imediata, e seria obrigada a repor as divisões e contradições que pretendia superar;
2) que a divisão entre os proprietários privados das condições de produção e a massa destituída seja um fenômeno universal, de modo que quando a massa destituída de um país iniciar sua revolução seja acompanhada pela revolução de todas as massas do planeta; em outras palavras, é preciso que o modo de produção capitalista tenha se tornado um processo histórico mundial ou universal para que uma revolução plena possa efetuar-se.
            O capitalismo como mercado mundial é, portanto, o pressuposto prático do comunismo como sociedade na qual os indivíduos exercerão o controle consciente dos poderes que parecem dominá-los de fora (Natureza, Mercado, Estado). (pp. 71-72). (destaques nossos).
A massa dos explorados enfim compreenderá que esses poderes foram produzidos pela práxis social e, que, por serem produtos da atividade histórica dos homens em condições determinadas, também podem ser destruídos pela prática social dos homens em condições determinadas. Até agora os homens fizeram a história, mas sem saber que a faziam, pois ao fazê-la em condições determinadas que não foram escolhidas por eles, tomavam tais condições como poderes exteriores e dominadores que os compeliam a agir. Com a revolução comunista, os homens saberão que fazem a história, mesmo que não tenham escolhido as condições em que a fazem. (pp. 72-73). (destaques nossos).
Sem as condições materiais da revolução, é inútil a idéia de revolução, “já proclamada centenas de vezes”. Mas sem a compreensão intelectual dessas condições materiais, a revolução permanece como um horizonte desejado, sem encontrar práticas que a efetivem”. (p. 73). (destaques nossos).
“A história não é o desenvolvimento das idéias, mas o das forças produtivas. Não é a ação dos Estados e dos governantes, mas a luta das classes. Não é história das mudanças de regimes políticos, mas a das relações de produção que determinam as forças políticas da dominação. Assim sendo, qual é o palco onde se desenvolve a história? A sociedade civil.
A sociedade civil não é o aglomerado conflitante de famílias e de corporações (sindicatos, trustes, cartéis, holdings, oligopólios) que serão reconciliados graças à ação reguladora e ordenadora do Estado enquanto expressão do interesse geral. A sociedade civil é o sistema de relações sociais que se organizam na produção econômica, nas instituições sociais e políticas e que são representadas ou interpretadas por um conjunto sistemático de idéias jurídicas, religiosas, políticas, morais, pedagógicas, científicas, artísticas, filosóficas. (pp. 73-74). (destaques nossos).
A sociedade civil é o processo de constituição e de reposição das condições materiais de existência, isto é, da produção (trabalho, divisão do trabalho, processo de trabalho, forma de distribuição e de consumo, circulação, acumulação e concentração da riqueza), por meio das quais são engendradas as classes sociais (exploradores e explorados, isto é, a contradição entre proprietários e não proprietários). A relação entre as classes assim produzidas é contraditória porque a condição necessária e suficiente para que haja proprietários privados é a existência dos não proprietários. Ou seja, a existência da classe dos proprietários depende inteiramente da existência da classe dos não proprietários, e esta última nasce do processo pelo qual alguns proprietários conseguem expropriar todos os outros e conseguem reduzir todo o restante da sociedade (escravos, servos, artesãos) à condição de assalariados. Em uma palavra, no caso da sociedade civil capitalista, afirmar que a existência dos proprietários (da classe capitalista) depende da exploração dos não proprietários (trabalhadores assalariados) significa simplesmente o seguinte: o capital é o trabalho não pago (a mais-valia). Temos uma contradição na medida em que a realidade do capital é a negação do trabalho. (p. 74). (destaques nossos).
A sociedade civil se realiza através de um conjunto de instituições sociais encarregadas de permitir a REPRODUÇÃO ou a reposição das relações sociais – família, escola, igrejas, polícia, partidos políticos, imprensa, meios de informação, magistraturas, Estado, etc. Ela é também o lugar onde essas instituições e o conjunto das relações sociais são pensadas ou interpretadas por meio das idéias – jurídicas, pedagógicas, morais, religiosas, científicas, filosóficas, artísticas, políticas, etc. (p. 75). (destaques nossos).
Produzida pela divisão social do trabalho que a cinde em classes contraditórias, a sociedade civil se realiza como luta de classes. A luta de classes não é apenas o confronto armado das classes, mas está presente em todos os procedimentos institucionais, políticos, policiais, legais, ilegais de que a classe dominante lança mão para manter sua dominação, indo desde o modo de organizar o processo de trabalho (separando os trabalhadores uns dos outros e separando a esfera de decisão e de controle do trabalho da esfera de execução, deixando esta última para os trabalhadores) e o modo de se apropriar dos produtos (pela exploração da mais-valia e pela exclusão dos trabalhadores do usufruto dos bens que produziram), até as normas do Direito e o funcionamento do Estado. Ela está presente também em todas as ações dos trabalhadores da cidade e do campo para diminuir a dominação e a exploração, indo desde a luta pela diminuição da jornada de trabalho, o aumento de salários, as greves, a criação de sindicatos livres até a formação de movimentos políticos para derrubar a classe dominante. A luta de classes é o quotidiano da sociedade civil. Está na política salarial, sanitária, e educacional, está na propaganda e no consumo, está nas greves e nas eleições, está nas relações entre pais e filhos, professores e estudantes, policiais e povo, juízes e réus, patrões e empregados. (pp. 75-76). (destaques nossos).
Se a história é a história da luta de classes, então a sociedade civil não é A Sociedade, isto é, uma espécie de grande indivíduo coletivo, um organismo feito de partes ou de órgãos funcionais que ora estão em harmonia e ora estão em conflito, ora estão bem regulados, ora estão em crise. A sociedade civil concebida como um indivíduo coletivo é uma das grandes idéias da IDEOLOGIA BURGUESA para ocultar que a sociedade civil é a PRODUÇÃO e REPRODUÇÃO da divisão em classes e é a luta das classes. Isto significa que a sociedade não pode ser o sujeito da história, criando-se e recriando-se a si mesma por passes de mágica. A história são “os indivíduos fazendo-se uns aos outros, tanto física quanto espiritualmente”.
 Este “fazer-se-uns-aos-outros” é a práxis social e significa:
1) que as classes sociais não estão feitas e acabadas pela sociedade, mas que estão se fazendo umas às outras por sua ação e que esta produz o movimento da sociedade civil;
2) que o conjunto das práticas sociais, tanto materiais quanto espirituais, fazendo os indivíduos existirem como seres contraditórios, os faz membros de uma classe social, isto é, participantes de formas diferenciadas de existência social, determinadas pelas relações econômicas de produção, pelas instituições sócio-políticas e pelas idéias ou representações. O sujeito da história, portanto, são as classes sociais.” (pp. 76-77). (destaques nossos).
“Ora, Marx e Engels mostram que as relações dos indivíduos com sua classe é uma relação alienada. Ou seja, assim como a Natureza, a Sociedade e o Estado aparecem para a consciência imediata dos indivíduos como poderes separados e estranhos que os dominam e governam, assim também a relação dos indivíduos com a classe lhes aparece imediatamente como uma relação com algo já dado e que os determina a ser, agir e pensar de uma forma fixa e determinada. A classe ganha autonomia com relação aos indivíduos, de modo que, em lugar de aparecer como resultante da ação deles, aparece de maneira invertida, isto é, como causando as ações deles. (p. 77). (destaques nossos).
“A classe se autonomiza em face dos indivíduos, de sorte que estes últimos encontram suas condições de vida preestabelecidas e têm, assim, sua posição na vida e o seu desenvolvimento pessoal determinado pela classe. Tornam-se subsumidos a ela. Trata-se do mesmo fenômeno que o da subsunção dos indivíduos isolados à divisão do trabalho e tal fenômeno não pode ser suprimido se não se supera a propriedade privada e o próprio trabalho. Indicamos várias vezes que essa subsunção dos indivíduos à classe determina e se transforma, ao mesmo tempo, em sua subsunção a todo tipo de representações.” (pp. 77-78). (citação da autora e destaques nossos).
Esta última frase (...) é fundamental para compreendermos a relação entre ALIENAÇÃO e IDEOLOGIA.
A ideologia não é um processo subjetivo consciente, mas um fenômeno objetivo e subjetivo involuntário produzido pelas condições objetivas da existência social dos indivíduos. Ora, a partir do momento em que a relação do indivíduo com sua classe é a da submissão a condições de vida e de trabalho pré-fixadas, essa submissão faz com que cada indivíduo não possa reconhecer-se como fazedor de sua própria classe. Ou seja, os indivíduos não podem perceber que a realidade da classe decorre da atividade de seus membros. Pelo contrário, a classe aparece como uma coisa em si e por si e da qual o indivíduo se converte numa parte, quer queira, quer não. É uma fatalidade do destino. A classe começa, então, a ser representada pelos indivíduos como algo natural (e não histórico), como um fato bruto que os domina, como uma “coisa” onde vivem. A ideologia burguesa, através de uma ciência chamada Sociologia, transforma em idéia científica ou em objeto científico essa “coisa” denominada “classe social”, estudando-a como um fato e não como resultado da ação dos homens.” (p. 78). (Aspas da autora e destaques nossos).
“A ideologia burguesa, através de seus intelectuais, irá produzir idéias que confirmem essa alienação, fazendo, por exemplo, com que os homens creiam que são desiguais por natureza e por talentos, ou que são desiguais por desejo próprio, isto é, os que honestamente trabalham enriquecem e os preguiçosos, empobrecem. Ou, então, faz com que creiam que são desiguais por natureza, mas que a vida social, permitindo a todos o direito de trabalhar, lhes dá iguais chances de melhorar – ocultando, assim, que os que trabalham não são senhores de seu trabalho e que, portanto, suas “chances de melhorar” não dependem deles, mas de quem possui os meios e condições do trabalho. Ou, ainda, faz com que os homens creiam que são desiguais por natureza e pelas condições sociais, mas que são iguais perante a lei e perante o Estado, escondendo que a lei foi feita pelos dominantes e que o Estado é instrumento dos dominantes.” (pp. 78-79). (destaques nossos).
ALIENAÇÃO
“Marx e Engels insistem em que não devemos tomar o problema da alienação como ponto de partida necessário para a transformação histórica. Ou seja, não devemos esperar que através da simples crítica da alienação haja uma modificação na consciência dos homens e que, graças a essa modificação, que é um mudança subjetiva, haverá uma mudança objetiva. Insistem em que a alienação é um fenômeno objetivo (algo produzido pelas condições reais de existência dos homens) e não um simples fenômeno subjetivo, isto é, um engano de nossa consciência. (p. 79) (destaques nossos).
A alienação é um processo ou o processo social como um todo. Não é produzida por um erro da consciência que se desvia da verdade, mas é resultado da própria ação social dos homens, da própria atividade material quando esta se separa deles, quando não podem controlá-la e são ameaçados e governados por ela. A transformação deve ser simultaneamente subjetiva e objetiva: a prática dos homens precisa ser diferente para que suas idéia sejam diferentes.” (pp. 79-80). (destaques nossos).
Todas as formas e todos os produtos da consciência não podem ser dissolvidos por força da crítica espiritual (como pretendiam os ideólogos alemães), pela dissolução dos fantasmas por ação da “autoconsciência” ou pela transformação dos “fantasmas”, dos “espectros”, das “visões” (maneira pela qual os ideólogos alemães descreviam a alienação). Só podem ser dissolvidos pela derrocada prática das relações reais de onde emanam essa tapeações idealistas. Não é a crítica, mas a revolução, a força matriz da história.” (p. 80, citação da autora e destaques nossos).
TEORIA
Com isto, Marx e Engels dão à teoria um sentido inteiramente novo enquanto crítica revolucionária: a teoria não está encarregada de “conscientizar” os indivíduos, não está encarregada de criar a consciência verdadeira para opô-la à consciência falsa, e com isto mudar o mundo. A teoria está encarregada de desvendar os processos reais e históricos enquanto resultados e enquanto condições da prática humana em situações determinadas, prática que dá origem à existência e à conservação da dominação de uns poucos sobre todos os outros. A teoria está encarregada de apontar os processos objetivos que conduzem à exploração e à dominação e aqueles que podem conduzir à liberdade. (pp. 80-81). (destaques nossos).
Percebemos, então, que a teoria – ao contrário da ideologia – não está encarregada de tomar o lugar da prática, fazendo a realidade depender das idéias. Também não está encarregada de guiar a prática, fazendo com que a atividade histórica dependa da consciência “verdadeira”. E também não está encarregada de se inutilizar enquanto teoria para valorizar apenas a prática, visto que a alienação prática reproduz a prática alienada. (p. 81). (destaques nossos).
RELAÇÃO TEORIA-PRÁTICA
A relação entre teoria e prática é revolucionária porque é dialética. Vimos que a dialética é o movimento das contradições e que a contradição é a existência de uma relação de negação interna entre termos que só existem graças a essa negação. Que significa dizer que a relação entre teoria e prática é dialética e não ideológica (como aquela relação que mostramos ser feita pelos positivistas)? A relação entre teoria e prática é uma relação simultânea e recíproca por meio da qual a teoria nega a prática enquanto prática imediata, isto é, nega a prática como um fato dado para revelá-la em suas mediações e como práxis social, ou seja, como atividade socialmente produzida e produtora da existência social. A teoria nega a prática como comportamento e ação dados, mostrando que se trata de processos históricos determinados pela ação dos homens que, depois, passam a determinar suas ações. Revela o modo pelo qual criam suas condições de vida e são, depois, submetidos por essas próprias condições. (pp. 81-82). (destaques nossos).
A prática, por sua vez, nega a teoria como um saber separado e autônomo, como puro movimento de idéias se produzindo umas às outras na cabeça dos teóricos. Nega a teoria como um saber acabado que guiaria e comandaria de fora a ação dos homens. E negando a teoria enquanto saber separado do real que pretende governar esse real, a prática faz com que a teoria se descubra como conhecimento das condições reais da prática existente, de sua alienação e de sua transformação. Por isso Marx e Engels afirmam que conhecem um único tipo de saber: a ciência da história.” (p. 82). (destaques nossos).
CONCEPÇÃO DO MOVIMENTO HISTÓRICO DENTRO DA IDEOLOGIA
““Toda concepção histórica, até o momento, ou tem omitido completamente a base real da história (forças de produção, capitais, divisão social do trabalho, propriedade, formas sociais de intercâmbio que cada geração encontra como produto da geração precedente e que a atual reproduz e transforma, alterando a forma da luta de classes), ou a tem considerado como algo secundário, sem qualquer conexão com o curso da história. Isto faz com que a história deva sempre ser escrita de acordo com um critério situado fora dela. A produção da vida real como algo separado da vida comum, como algo extra e supraterrestre. Com isto, a relação dos homens com a Natureza é excluída da História, o que engendra a oposição entre Natureza e História. Consequentemente, tal concepção apenas vê na História as ações políticas dos Príncipes e do Estado, as lutas religiosas e as lutas teóricas em geral, e vê-se obrigada a compartilhar, em cada época, a ilusão dessa época. Por exemplo, se uma época imagina ser determinada por motivos puramente “políticos” ou “religiosos”, embora a “política” e a “religião” sejam apenas formas aparentes de seus motivos reais, então o historiador dessa época considerada aceita essa opinião. A “imaginação”, a “representação” que homens historicamente determinados fizeram de sua práxis real transforma-se, na cabeça do historiador, na única força determinante e ativa que domina e determina a práxis desses homens. (...). (pp. 82-83)
Uma vez postas como forças históricas motrizes aquelas forças (políticas, religiosas, culturais, etc.) que, na verdade são determinadas pelas forças reais, todo o processo histórico fica invertido ou de ponta-cabeça. Assim, acontecimentos históricos posteriores são convertidos na “finalidade” da história anterior. É o que ocorre quando se explica a descoberta da América como um acontecimento que teve por finalidade auxiliar o surgimento da Revolução Francesa. Ou quando se explica o episódio da Inconfidência Mineira como tendo a finalidade de preparar o da Independência. (pp. 84-85). (destaques nossos).
Na medida em que as forças reais, que explicam o processo de surgimento de um acontecimento permanecem ignoradas ou escondidas, o historiador-ideólogo inventa causas e finalidades que acabam convertendo a história numa entidade autônoma que possui seu próprio sentido e caminha por sua própria conta, usando os homens como seus instrumentos ocasionais. Estamos, aqui, longe da realidade histórica e diante da idéia da história. (p. 84). (destaques nossos).
É assim, por exemplo, que a ideologia burguesa tende a explicar a história através da idéia de progresso. Como a burguesia se vê a si mesma como uma força progressista, porque usa as técnicas e as ciências para um aumento total do controle sobre a Natureza e a sociedade, considera que todo o real se explica em termos de progresso. O historiador-ideólogo constrói a idéia de progresso histórico concebendo-o como a realização, no tempo, de algo que já existia antes de forma embrionária e que se desenvolve até alcançar seu ponto final necessário. Visto que a finalidade do processo já está dada (isto é, já se sabe de antemão qual vai ser o futuro), e visto que o progresso é uma “lei” da história, esta irá alcançar necessariamente o fim conhecido. Com isto, os homens se tornam instrumentos ou meios para a “história” realizar seus fins próprios e são justificadas todas as ações que se realizam “em nome do progresso”. (pp. 84-86). (destaques nossos).
Dessa maneira, não só os acontecimentos históricos são explicados de modo invertido (o fim explica o começo), mas tal “explicação” ainda permite que a classe dominante justifique suas ações, fazendo-as aparecer como “razões da história”. Atribui-se à história uma racionalidade que é apenas a legitimação dos dominantes.” (p. 85). (destaques nossos).
CONCEPÇÃO DO MOVIMENTO HISTÓRICO SEGUNDO O MATERIALISMO HISTORICO-DIALÉTICO
“Se a história é o processo prático pelo qual homens determinados em condições determinadas estabelecem relações sociais por meio das quais transformam a Natureza (pelo trabalho), se dividem em classes (pela divisão social do trabalho que determina a existência de proprietário e de não proprietários), organizam essas relações através das instituições e representam suas vidas através das idéias, e se a história é da luta de classes, luta que fica dissimulada pelas idéias que representam os interesses contraditórios como se fossem interesses comuns de toda a sociedade (através da ideologia e do Estado), então a história é também o processo de dominação de uma parte da sociedade sobre todas as outras.” (p. 85). (destaques nossos).
IDEOLOGIA
Isto significa que, em termos do materialismo histórico e dialético, é impossível compreender a origem e a função da ideologia sem compreender a luta de classes, pois a ideologia é um dos instrumentos da dominação de classe e uma das formas da luta de classes. A ideologia é um dos meios usados pelos dominantes para exercer a dominação, fazendo com que esta não seja percebida como tal pelos dominados.
A peculiaridade da ideologia e que a transforma numa força quase impossível de remover decorre dos seguintes aspectos:
1)    o que torna a ideologia possível, isto é, a suposição de que as idéias existem em si e por si mesmas desde toda a eternidade, é a separação entre trabalho material e trabalho intelectual, ou seja, a separação entre trabalhadores e pensadores. Portanto, enquanto esses dois trabalhos estiverem separados, enquanto o trabalhador for aquele que “não pensa” ou que “não sabe pensar”, e o pensador for aquele que não trabalha, a ideologia não perderá sua existência nem sua função; (p. 86). (destaques nossos).
2)    o que torna objetivamente possível a ideologia é o fenômeno da alienação, isto é, o fato de que, no plano da experiência vivida e imediata, as condições reais de existência social dos homens não lhes apareçam como produzidas por eles, mas, ao contrário, eles se percebem produzidos por tais condições e atribuem a origem da vida social a forças ignoradas, alheias às suas, superiores e independentes (deuses, Natureza, Razão, Estado, destino, etc.), de sorte que as idéias quotidianas dos homens representam a realidade de modo invertido e são conservadas nessa inversão, vindo a constituir os pilares para a construção da ideologia. Portanto, enquanto não houver um conhecimento da história real, enquanto a teoria não mostrar o significado da prática imediata dos homens, enquanto a experiência comum de vida for mantida sem crítica e sem pensamento, a ideologia se manterá; (pp. 86-87). (destaques nossos).
3)    o que torna possível a ideologia é a luta de classes, a dominação de uma classe sobre as outras. Porém, o que faz da ideologia uma força quase impossível de ser destruída é o fato de que a dominação real é justamente aquilo que a ideologia tem por finalidade ocultar. Em outras palavras, a ideologia nasce para fazer com que os homens creiam que suas vidas são o que são em decorrência da ação de certas entidades (a Natureza, os deuses ou Deus, a Razão ou a Ciência, a Sociedade, o Estado) que existem em si e por si e às quais é legítimo e legal que se submetam. Ora, como a experiência vivida imediata e a alienação confirmam tais idéias, a ideologia simplesmente cristaliza em “verdades” a visão invertida do real.
 Seu papel é fazer com que no lugar dos dominantes apareçam idéias “verdadeiras”.
 Seu papel também é o de fazer com que os homens creiam que tais idéias representam efetivamente a realidade.
 E, enfim, também é seu papel fazer com que os homens creiam que essas idéias são autônomas (não dependem de ninguém) e que representam realidades autônomas (não foram feitas por ninguém). (pp. 87-88). (destaques nossos).
Assim, por exemplo, na ideologia burguesa, a família não é entendida como uma relação social que assume formas, funções e sentidos diferentes tanto em decorrência das condições históricas quanto em decorrência da situação de cada classe social na sociedade. Pelo contrário, a família é representada como sendo sempre a mesma (no tempo e para todas as classes) e, portanto, como uma realidade natural (biologia), sagrada (desejada e abençoada por Deus), eterna (sempre existiu e sempre existirá), moral (a vida boa, pura, normal, respeitada) e pedagógica (nela se aprendem as regras da verdadeira convivência entre os homens, com o amor dos pais pelos filhos, com o respeito e temor dos filhos pelos pais, com o amor fraterno). Estamos, pois, diante da idéia da família e não diante da realidade histórico-social da família. (p. 88). (destaques nossos).
Ou, então, quando se diz que o trabalho dignifica o homem e não se analisam as condições reais de trabalho, que brutalizam, entorpecem, exploram certos homens em benefícios de uns poucos. Estamos diante da idéia de trabalho e não diante da realidade histórico-social do trabalho.
Ou, então, quando se diz que os homens são livres por natureza e que exprimem essa liberdade pela capacidade de escolher entre coisas ou entre situações dadas, sem que se analise quais coisas e quais situações são dadas para que os homens escolham. Quem dá as condições para a escolha? Todos podem realmente escolher o que desejarem? O nordestino, vítima da seca e do proprietário das terras, realmente “escolhe” vir para o sul do país? Escolhe viver na favela? O peão metalúrgico “escolheu” livremente fazer horas-extras depois de 12 horas de trabalho? A menina grávida que teme as sanções da família e da sociedade “escolhe” fazer um aborto? A definição da liberdade como igual direito à escolha é a idéia burguesa da liberdade e não a realidade histórico-social da liberdade. (pp. 88-89). (destaques nossos).
Dissemos que a ideologia é resultado da luta de classes e que tem por função esconder a existência dessa luta. Podemos acrescentar que o poder ou a eficácia da ideologia aumentam quanto maior for sua capacidade para ocultar a origem da divisão social em classes e a luta de classes.” (pp. 89-90). (destaques nossos).
“A divisão social do trabalho, ao separar os homens em proprietários e não proprietários, dá aos primeiros poder sobre os segundos. Estes são explorados economicamente e dominados politicamente. Estamos diante de classes sociais e da dominação de uma classe por outra. Ora, a classe que explora economicamente só poderá manter seus privilégios se dominar politicamente e, portanto, se dispuser de instrumentos para essa dominação. Esses instrumentos são dois: o Estado e a ideologia.
Através do Estado, a classe dominante monta um aparelho de coerção e de repressão social que lhe permite exercer o poder sobre toda a sociedade, fazendo-a submeter-se às regras políticas. O grande instrumento do Estado é o Direito, isto é, o estabelecimento das leis que regulam as relações sociais em proveito dos dominantes. Através do Direito, o Estado aparece como legal, ou seja, como “Estado de direito”. O papel do Direito ou das leis é o de fazer com eu a dominação não seja tida como uma violência, mas como legal, e por ser legal e não violenta deve ser aceita. A lei é o direito para o dominante e dever para o dominado. Ora, se o Estado e o Direito fossem percebidos nessa sua realidade real, isto é, como instrumentos para o exercício consentido da violência, evidentemente ambos não seriam respeitados e os dominados se revoltariam. A função da ideologia consiste em impedir essa revolta fazendo com que o legal apareça para os homens como legítimo, isto é, como justo e bom. Assim, a ideologia substitui a realidade do Estado pela idéia do Estado – ou seja, a dominação de uma classe é substituída pela idéia de interesse geral encarnado pelo Estado. E substitui a realidade do Direito pela idéia do Direito – ou seja, a dominação de uma classe por meio das leis é substituída pela representação ou idéias dessas leis como legítimas, justas, boas e válidas para todos.” (p. 91). (destaques nossos).
“Não se trata de supor que os dominantes se reúnam e decidam fazer uma ideologia, pois esta seria, então, uma pura maquinação diabólica dos poderosos. E, se assim fosse, seria muito fácil acabar com uma ideologia.
A ideologia resulta da prática social, nasce atividade social dos homens no momento em que estes representam para si mesmos essa atividade, e vimos que essa representação é sempre necessariamente invertida. O que ocorre, porém, é o seguinte processo: as diferentes classes sociais representam para si mesmas o seu modo de existência tal como é vivido diretamente por elas, de sorte que as representações ou idéias (todas elas invertidas) diferem segundo as classes e segundo as experiências que cada uma delas tem de sua existência nas relações de produção. No entanto, as idéias dominantes em uma sociedade numa época determinada não são todas as idéias existentes nessa sociedade, mas serão apenas as idéias da classe dominante dessa sociedade nessa época. Ou seja, a maneira pela qual a classe dominante representa a si mesma (sua idéia a respeito de si mesma), representa sua relação com a Natureza, com os demais homens, com a sobrenatureza (deuses), com o Estado, etc., tornar-se-á a maneira pela qual todos os membros dessa sociedade irão pensar. (p. 92). (destaques nossos).
A ideologia é o processo pelo qual as idéias da classe dominante se tornam idéias de todas as classes sociais, se tornam idéias dominantes. (...).(p. 92). (destaques nossos).
Na Ideologia Alemã, lemos: “As idéias da classe dominante são, em cada época, as idéias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual. A classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção espiritual, o que faz com que a ela sejam submetidas, ao mesmo tempo e em média, as idéias daqueles aos quais faltam os meios de produção espiritual. As idéias dominantes nada mais são do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, as relações materiais dominantes concebidas como idéias; portanto, a expressão das relações que tornam uma classe a classe dominante; portanto, as idéias de sua dominação. Os indivíduos que constituem a classe dominante possuem, entre outras coisas, também consciência e, por isso, pensam. Na medida em que dominam como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que o façam em toda a sua extensão e, consequentemente, entre outras coisas, dominem também como pensadores, como produtores de idéias; que regulem a produção e distribuição das idéias de seu tempo e que suas idéias sejam, por isso mesmo, as idéias dominantes da época.” (p. 93) (Citação da autora, destaques nossos).
A ideologia consiste precisamente na transformação das idéias da classe dominante em idéias dominantes para a sociedade como um todo, de modo que a classe que domina no plano material (econômico, social e político) também domina no plano espiritual (das idéias). (p. 93-94). (destaques nossos).
Isto significa que:
1) embora a sociedade esteja dividida em classes e cada qual devesse ter suas próprias idéias, a dominação de uma classe sobre as outras faz com que só sejam consideradas válidas, verdadeiras e racionais as idéias da classe dominante;
2) para que isso ocorra, é preciso que os membros não percebam como estando divididos em classes, mas se vejam como tendo certas características humanas comuns a todos e que tornam as diferenças sociais algo derivado ou de menor importância;
3) para que todos os membros da sociedade se identifiquem com essas características supostamente comuns a todos, é preciso que elas sejam convertidas em idéias comuns a todos. Para que isto ocorra é preciso que a classe dominante, além de produzir suas próprias idéias, também possa distribuí-las, o que é feito, por exemplo, através da educação, da religião, dos costumes, dos meios de comunicação disponíveis;
4) como tais idéias não exprimem a realidade real, mas representam a aparência social, as imagens das coisas e dos homens, é possível passar a considerá-las como independentes da realidade e, mais do que isto, inverter a relação fazendo com que a realidade concreta seja tida como a realização dessas idéias.” (p. 94). (destaques nossos).
UNIVERSAIS ABSTRATOS
“Todos esses procedimentos consistem naquilo que é a operação intelectual por excelência da ideologia: a criação de universais abstratos, isto é, a transformação das idéias particulares da classe dominante em idéias universais de todos e para todos os membros da sociedade. Essa universalidade das idéias é abstrata porque não corresponde a nada real e concreto, visto que no real existem concretamente classes particulares e não a universalidade humana. As idéias da ideologia são, pois, universais abstratos.” (p. 95). (destaques nossos).
QUEM SÃO OS IDEÓLOGOS
“Os ideólogos são aqueles membros da classe dominante ou da classe média (aliada natural da classe dominante) que, em decorrência da divisão social do trabalho em trabalho material e espiritual, constituem a camada dos pensadores ou dos intelectuais. Estão encarregados, por meio da sistematização das idéias, de transformar as ilusões da classe dominante (isto é, a visão que a classe dominante tem de si mesma e da sociedade) em representações coletivas ou universais. Assim, a classe dominante (e sua aliada, a classe média) se divide em pensadores e não pensadores, ou em produtores ativos de idéias e consumidores passivos de idéias. (p. 95). (destaques nossos).
Muitas vezes, no interior da classe dominante e de sua aliada, a divisão entre pensadores e não pensadores pode assumir a forma de conflitos – por exemplo, entre nobres e sacerdotes, entre burguesia conservadora e intelectuais progressistas -, mas tal conflito não é uma contradição, não exprime a existência de duas classes sociais contraditórias, mas apenas oposições no interior da mesma classe. A prova disso, escrevem Marx e Engels, é que basta haver uma ameaça real para a dominação da classe dominante para que os conflitos sejam esquecidos e todos fiquem do mesmo lado da barricada. Nessas ocasiões, “desaparece a ilusão de que as idéias dominantes não são as idéias da classe dominante e que teriam um poder diferente do poder dessa classe”. (pp. 95-96). (destaques nossos).
Assim, por exemplo, é possível que, em determinadas circunstâncias históricas, os intelectuais se coloquem contra a burguesia e se façam aliados dos trabalhadores. Se os trabalhadores, compreendendo a origem da exploração econômica e da dominação política, decidirem destruir o poder dessa burguesia, é possível que os intelectuais progressistas, sem o saber, passem para o lado da burguesia. É o que ocorre, por exemplo, quando, diante do aguçamento da luta de classes num país, os intelectuais demonstram aos trabalhadores que, naquela fase histórica, o verdadeiro inimigo não é a burguesia nacional, mas a burguesia internacional imperialista, e que se deve lutar primeiro contra ela. A ideologia da unidade nacional, que os intelectuais progressistas, de boa-fé, imaginam servir aos trabalhadores, na verdade serve à classe dominante. (p. 96). (destaques nossos).
Por que isto ocorre? Do lado dos intelectuais, isto decorre do fato de que interiorizam de tal modo as idéias dominantes que não percebem o que estão pensando. Do lado dos trabalhadores, se aceitam tal ideologia nacionalista, isto decorre da divisão social do trabalho que foi interiorizada por eles, fazendo-os crer que não sabem pensar e que devem confiar em quem pensa. Com isto, também eles são vítimas do poder das idéias dominantes.” (pp. 96-97). (destaques nossos).
HEGEMONIA
“Esse fenômeno de manutenção das idéias dominantes mesmo quando se está lutando contra a classe dominante é o aspecto fundamental daquilo que Gramsci denomina de hegemonia, ou o poder espiritual da classe dominante. Por isso ele dizia que, se num determinado momento, os trabalhadores de um país precisam lutar usando a bandeira do nacionalismo, a primeira coisa a fazer é redefinir toda a idéia de nação, desfazer-se da idéia burguesa de nacionalidade e elaborar uma idéia do nacional que seja idêntica à de popular. Precisam, portanto, contrapor, à idéia dominante de nação, uma outra, popular, que negue a primeira.” (p. 97). (destaques nossos).
HISTÓRIA+UNIVERSAIS ABSTRATOS+CONTROLE+INTERPRETAÇÃO
“Uma história concreta não perde de vista a origem de classe das idéias de uma época, nem perde de vista que a ideologia nasce para servir aos interesses de uma classe e que só pode fazê-lo transformando as idéias dessa classe particular em idéias universais. (p. 97). (destaques nossos).
Não perde de vista, também, que a produção e distribuição dessas idéias ficam sob controle da classe dominante, que usa as instituições sociais para sua implantação – família, escola, igrejas, partidos políticos, magistraturas, meios de comunicação da cultura, permanecem atrelados à conservação do poder dos dominantes. (pp. 97-98). (destaques nossos).
(Caso isso não ocorra, pode-se interpretar, por exemplo, que:) (...) no mundo capitalista, as relações entre os indivíduos são determinadas pela compra e venda da força-de-trabalho no mercado, estabelecendo-se entre as partes (proprietários e assalariados) um contrato de trabalho. Ora, o pressuposto jurídico da idéia de contrato é que as partes sejam iguais e livres, de sorte que não apareça o fato de que uma das partes não é igual à outra, nem é livre. A realização de relações econômicas, sociais e políticas baseadas na idéia de contrato leva à universalização abstrata das idéias de igualdade e de liberdade. (pp.98-99). (destaques nossos).
O processo histórico real, escrevem Marx e Engels, não é o do predomínio de certas idéias em certas épocas, mas ou outro e que é o seguinte: cada nova classe em ascensão que começa a se desenvolver dentro de um modo de produção que será destruído quando essa nova classe dominar, cada classe emergente, dizíamos, precisa formular seus interesses de modo sistemático e, para ganhar o apoio do restante da sociedade contra a classe dominante existente, precisa fazer com que tais interesses apareçam como interesses de toda a sociedade. Assim, por exemplo, a burguesia, ao elaborar as idéias de igualdade e de liberdade como essência do homem faz com que se coloquem de seu lado como aliados todos os membros da sociedade feudal submetidos ao poder da nobreza, que encarnava o princípio da desigualdade e da servidão. (p. 99). (destaques nossos).
Para poder ser o representante de toda a sociedade contra uma classe particular que está no poder, a nova classe emergente precisa dar às suas idéias a maior universalidade possível, fazendo com que apareçam como verdadeiras e justas para o maior número possível de membros do sociedade. Precisa apresentar tais idéias como as únicas racionais e as únicas válidas para todos. Ou seja, a classe ascendente não pode aparecer como uma classe particular contra outra classe particular, mas precisa aparecer como representante de toda a sociedade, dos interesses de todos contra os interesses da classe particular dominante. E consegue aparecer assim universalizada graças às idéias que defende como universais. (pp. 99-100). (destaques nossos).
No início do processo de ascensão é verdade que a nova classe representa um interesse coletivo: o interesse de todas as classes não dominantes. Porém, uma vez alcançada a vitória e a classe ascendente tornando-se classe dominante, seus interesses passam a ser particulares, isto é, são apenas seus interesses de classe (isso porque, os interesses anteriormente percebidos como universais, não podem se materializar universalmente, ou seja, não podem se materializar para todos, pois isso ultrapassaria o objetivo original da classe emergente tirando da mesma a possibilidade de tornar-se dominante). No entanto, agora, tais interesses precisam ser mantidos com a aparência de universais, porque precisam legitimar o domínio que exerce sobre o restante da sociedade. Em uma palavra: as idéias universais da ideologia não são uma invenção arbitrária ou diabólica, mas são a conservação de uma universalidade que já foi real num certo momento (quando a classe ascendente realmente representava os interesses de todos os não dominantes), mas que agora é uma universalidade ilusória (pois a classe dominante tornou-se representante apenas de seus interesses particulares). (pp. 100-101). (destaques nossos).
“Cada nova classe estabelece sua dominação sempre sobre uma base mais extensa do que a classe que até então dominava, ao passo que, mais tarde, a oposição entre a nova classe dominante e a não dominante se agrava e se aprofunda ainda mais.” Isto significa que cada nova classe dominante, enquanto estava em ascensão, apontava para a possibilidade de um maior número de indivíduos exercerem a dominação e, por isso, quando toma o poder, usa de procedimentos mais radicais do que os já existentes para afastar as possibilidades de exercício do poder por parte dos dominados. Por isso a distância entre dominantes e dominados aumenta ainda mais e os dominados, afinal, terão que lutar pelo término de toda e qualquer forma de dominação.” (p. 101) (Citação da autora e destaques nossos).
“Estamos agora em condições de compreender as determinações gerais da ideologia (recordando que determinação significa: características intrínsecas a uma realidade e que foram sendo produzidas pelo processo que deu origem a essa realidade). Podemos agora compreender o que é a ideologia porque acompanhamos o processo que a produz concretamente. (p. 101). (destaques nossos).
As principais determinações que constituem o fenômeno da ideologia são:
1)    a ideologia é resultado da divisão social do trabalho e, em particular, da separação entre trabalho material/manual e trabalho espiritual/intelectual; (p. 102). (destaques nossos).
2)    essa separação dos trabalhos estabelece a aparente autonomia do trabalho intelectual face ao trabalho material;
3)    essa autonomia aparente do trabalho intelectual aparece como autonomia dos produtores desse trabalho, isto é, dos pensadores:
4)    essa autonomia dos produtores do trabalho intelectual aparece como autonomia dos produtos desse trabalho, isto é, das idéias;
5)    essas idéias autonomizadas são as idéias da classe dominante de uma época e tal autonomia é produzida no momento em que se faz uma separação entre os indivíduos que dominam e as idéias que dominam, de tal modo que a dominação de homens sobre homens não seja percebida porque aparece como dominação das idéias sobre todos os homens;
6)    a ideologia é, pois, um instrumento de dominação de classe e, como tal, sua origem é a existência da divisão da sociedade em classes contraditórias e em luta; (p. 102). (destaques nossos).
7)    a divisão da sociedade em classes se realiza como separação entre proprietários e não proprietários das condições e dos produtos do trabalho, como divisão entre exploradores e explorados, dominantes e dominados e, portanto, se realiza como luta de classes. Esta não deve ser entendida apenas como os momentos de confronto armado entre as classes, mas como o conjunto de procedimentos institucionais, jurídicos, políticos, policiais, pedagógicos, morais, psicológicos, culturais, religiosos, artísticos, usados pela classe dominante para manter a dominação. E como todos os procedimentos dos dominados para diminuir ou destruir essa dominação. A ideologia é um instrumento de dominação de classe; (pp. 102-103). (destaques nossos).
8)    se a dominação e a exploração de uma classe for perceptível como violência, isto é, como poder injusto e ilegítimo, os explorados e dominados se sentem no justo e legítimo direito de recusá-la, revoltando-se. Por este motivo, o papel específico da ideologia como instrumento da luta de classes é impedir que a dominação e a exploração sejam percebidas em sua realidade concreta. Para tanto, é função da ideologia dissimular e ocultar a existência das divisões sociais como divisões de classes, escondendo, assim, sua própria origem. Ou seja, a ideologia esconde que nasceu da luta de classes para servir a uma classe na dominação;
9)    por ser o instrumento encarregado de ocultar as divisões sociais, a ideologia deve transformar as idéias particulares da classe dominante em idéias universais, válidas igualmente para toda a sociedade; (p. 103). (destaques nossos).
10)                      a universalidade dessas idéias é abstrata, pois no concreto existem idéias particulares de cada classe. Por ser uma abstração, a ideologia constrói uma rede imaginária de idéias e de valores que possuem uma base real (a divisão social), mas de tal modo que essa base seja reconstruída de modo invertido e imaginário; (pp. 103-104). (destaques nossos).
11)                      a ideologia é uma ilusão, necessária à dominação de classe. Por ilusão não devemos entender “ficção”, “fantasia”, “invenção gratuita e arbitrária”, “erro”, “falsidade”, pois com isto suporíamos que há ideologias falsas ou erradas e outras que seriam verdadeiras e corretas. Por ilusão devemos entender: abstração e inversão. Abstração (como vimos anteriormente) é o conhecimento de uma realidade tal como se oferece à nossa experiência imediata, como algo dado, feito e acabado que apenas classificamos, ordenamos e sistematizamos, sem nunca indagar como tal realidade foi concretamente produzida. Uma realidade é concreta porque mediata, isto é, porque produzida por um sistema determinado de condições que se articulam internamente de maneira necessária. Inversão (como também vimos anteriormente) é tomar o resultado de um processo como se fosse seu começo, tomar os efeitos pelas causas, as conseqüências pelas premissas, o determinado pelo determinante. Assim, por exemplo, quando os homens admitem que são desiguais porque Deus ou a Natureza os fez desiguais, estão tomando a desigualdade como causa de sua situação social e não como tendo sido produzida pelas relações sociais e, portanto, por eles próprios, sem que o desejassem e sem que o soubessem; (p. 104). (destaques nossos).
12)                      porque a ideologia é ilusão, isto é, abstração e inversão, ela permanece sempre no plano imediato do aparecer social. Ora, como vimos, ao falarmos do fetichismo da mercadoria, o aparecer social é o modo de ser do social de ponta-cabeça. A aparência social não é algo falso e errado, mas é o modo como o processo social aparece para a consciência direta dos homens. Isso significa que uma ideologia sempre possui uma base real, só que essa base está de ponta-cabeça, é a aparência social. Assim, por exemplo, a sociedade burguesa aparece em nossa experiência imediata como estando formada por três tipos diferentes de proprietários: o capitalista, proprietário do capital; o dono da terra, proprietário da renda da terra; e o trabalhador, proprietário do salário. Se todos são proprietários, embora de coisas diferentes, então todos os homens dessa sociedade são iguais e possuem iguais direitos. Enquanto não ultrapassarmos essa aparência e procurarmos o modo como realmente e concretamente são produzidos esses proprietários pelo sistema capitalista, não poderemos compreender que o salário não é propriedade do trabalhador, mas é o trabalho não pago pelo capitalista, que a renda não vem da terra, mas de sua transformação em capital pelo trabalho não pago do camponês ou dos mineiros, e que, finalmente, só o capital é efetivamente propriedade. Enquanto não tivermos essa compreensão histórica do processo real, a idéia de igualdade não só parecerá verdadeira, mas ainda possuirá base real, ou seja, a maneira pela qual os homens aparecem no modo de produção capitalista. É neste sentido que se deve entender a ideologia como ilusão, abstração e inversão; (pp. 104-106). (destaques nossos).
13)                      a ideologia não é um “reflexo” do real na cabeça dos homens, mas o modo ilusório (isto é, abstrato e invertido) pelo qual representam o aparecer social como se tal aparecer fosse a realidade social.


(CHAUI, Marilena. O que é ideologia, 35ª ed. (Coleção Primeiros Passos).São Paulo: Brasiliense, 1992.)

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