quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Pai afasta de nós esse cale-se!


Música Cálice de Chico Buarque

A música "Cálice" foi escrita em 1973 por Chico Buarque e Gilberto Gil, sendo lançada apenas em 1978. Devido ao seu conteúdo de denúncia e crítica social, foi censurada pela ditadura, sendo liberada cinco anos depois. Apesar do desfazamento temporal, Chico gravou a canção com Milton Nascimento no lugar de Gil (que tinha mudado de gravadora) e decidiu incluir no seu álbum homônimo.
Capa do disco Chico Buarque de 1978.Capa do disco "Chico Buarque" de 1978.
"Cálice" se tornou num dos mais famosos hinos de resistência ao regime militar. Trata-se de uma canção de protesto que ilustra, através de metáforas e duplos sentidos, a repressão e a violência do governo autoritário.
Conheça também a análise da música Construção de Chico Buarque.
Música e letra
Cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça
Análise da letra
Refrão
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

A música começa com a referência de uma passagem bíblica: "Pai, se queres, afasta de mim este cálice" (Marcos 14:36). Lembrando Jesus antes do calvário, a citação convoca também as ideias de perseguição, sofrimento e traição.
Usada como forma de pedir que algo ou alguém permaneça longe de nós, a frase ganha um significado ainda mais forte quando reparamos na semelhança de sonoridade entre "cálice" e "cale-se". Como se suplicasse "Pai, afasta de mim esse cale-se", o sujeito lírico pede o fim da censura, essa mordaça que o silencia.
Assim, o tema usa a paixão de Cristo como analogia do tormento do povo brasileiro nas mãos de um regime repressor e violento. Se, na Bíblia, o cálice estava repleto do sangue de Jesus, nesta realidade, o sangue que transborda é o das vítimas torturadas e mortas pela ditadura.
Primeira estrofe
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta

Infiltrada em todos os aspectos da vida, a repressão se fazia sentir, pairando no ar e atemorizando os indivíduos. O sujeito expressa a sua dificuldade em beber essa "bebida amarga" que lhe oferecem, "tragar a dor", ou seja, banalizar o seu martírio, aceitá-lo como se fosse natural.
Refere também que tem que "engolir a labuta", o trabalho pesado e mal remunerado, a exaustão que é obrigado a aceitar calado, a opressão que já se tornou rotina.
No entanto, "mesmo calada a boca, resta o peito" e tudo o que ele continua sentido, ainda que não possa se expressar livremente.
Propaganda do regime militar.Propaganda do regime militar.
Mantendo o imaginário religioso, o eu lírico se diz "filho da santa" o que, neste contexto, podemos entender como a pátria, retratada pelo regime como intocável, inquestionável, quase sagrada. Ainda assim, e numa atitude desafiadora, afirma que preferia ser "filho da outra".
Pela ausência de rima, podemos concluir que os autores queriam incluir um palavrão mas foi necessário alterar a letra para não chamar a atenção dos censores. A escolha de uma outra palavra que não rima deixa implícito o sentido original.
Se demarcando totalmente do pensamento condicionado pelo regime, o sujeito lírico declara sua vontade de ter nascido em "outra realidade menos morta".
Queria viver sem ditadura, sem "mentira" (como o suposto milagre econômico que o governo aclamava) e "força bruta" (autoritarismo, violência policial, tortura).
Segunda estrofe
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa

Nestes versos, vemos a luta interior do sujeito poético para acordar em silêncio a cada dia, sabendo das violências que aconteciam durante a noite. Sabendo que, mais cedo ou mais tarde, também se tornaria vítima.
Chico faz alusão a um método bastante usado pela polícia militar brasileira. Invadindo casas durante a noite, arrastava "suspeitos" das suas camas, prendendo uns, matando outros, e fazendo sumir os restantes.
Perante todo esse cenário de horror, confessa o desejo de "lançar um grito desumano", resistir, combater, manifestar sua raiva, na tentativa de "ser escutado".
Protesto pelo fim da censuraProtesto pelo final da censura.
Apesar de "atordoado", declara que permanece "atento", em estado de alerta, pronto para participar da reação coletiva.
Sem poder fazer outra coisa, assiste passivamente na "arquibancada", esperando, temendo ,"o monstro da lagoa". A figura, própria do imaginário das histórias infantis, representa aquilo que nos foi ensinado que devemos temer, servindo de metáfora para a ditadura.
"Monstro da lagoa" também era uma expressão usada para referir os corpos que apareciam boiando nas águas do mar ou de um rio.
Terceira estrofe
De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade

Aqui, ganância é simbolizada pelo pecado capital da gula, com a da porca gorda e inerte como metáfora de um governo corrupto e incompetente que não consegue mais operar.
A brutalidade da polícia, transformada em "faca", perde seu propósito pois está gasta de tanto ferir e "já não corta", sua força vai desaparecendo, o poder vai enfraquecendo.
Pichação num muro onde se lê abaixo a ditaduraHomem pichando muro com mensagem contra a ditadura.

Novamente, o sujeito narra sua luta quotidiana em sair de casa, "abrir a porta", estar no mundo silenciado, com "essa palavra presa na garganta". Além disso, podemos entender "abrir a porta" como sinônimo de se libertar, nesse caso, através da queda do regime. Numa leitura bíblica, é também símbolo de um novo tempo.
Mantendo o tema religioso, o eu lírico questiona para que adianta "ter boa vontade", fazendo outra referência à Bíblia. Convoca a passagem "Paz na terra aos homens de boa vontade", lembrando que não tem paz nunca.
Apesar de ser forçado a reprimir palavras e sentimentos, continua mantendo o pensamento crítico, "resta a cuca". Mesmo quando deixamos de sentir, existem sempre as mentes dos desajustados, os "bêbados do centro da cidade" que continuam sonhando com uma vida melhor.
Quarta estrofe
Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça

Contrastando com as anteriores, a última estrofe traz um laivo de esperança nos versos iniciais, com a possibilidade do mundo não se limitar apenas àquilo que o sujeito conhece.
Percebendo que sua vida não é "fato consumado", que está em aberto e pode seguir diversas direções, o eu lírico reclama seu direito sobre si mesmo.
Querendo inventar seu "próprio pecado" e morrer do "próprio veneno", afirma a vontade de viver sempre segundo as próprias regras, sem ter que acatar ordens ou moralismos de ninguém.
Para isso, tem que derrubar o sistema opressor, a que se dirige, no desejo de cortar o mal pela raiz: "Quero perder de vez tua cabeça".
Sonhando com a liberdade, demonstra a extrema necessidade de pensar e se expressar livremente. Quer se reprogramar de tudo o que a sociedade conservadora lhe ensinou e deixar de estar subjugado a ela ("perder teu juízo").
Protesto contra os crimes do regime militarProtesto contra a violência do regime.
Os dois versos finais fazem alusão direta a um dos métodos de tortura usados pela ditadura militar (a inalação de óleo diesel). Ilustram também a uma tática de resistência (fingir perder os sentidos para que interrompessem essa tortura).
História e significado da música
"Cálice" foi escrita para ser apresentada no show Phono 73 que reunia, em duplas, os maiores artistas da gravadora Phonogram. Quando submetido ao crivo da censura, o tema foi reprovado.
Os artistas decidiram cantá-la, mesmo assim, murmurando a melodia e repetindo apenas a palavra "cálice". Acabaram sendo impedidos de cantar e o som dos seus microfones foi cortado.
Gilberto Gil partilhou com o público, muitos anos depois, algumas informações sobre o contexto de criação da música, suas metáforas e simbologias.
Chico e Gil se juntaram no Rio de Janeiro para escrever a canção que deveriam apresentar, em dupla, no show. Músicos ligados à contracultura e à resistência, partilhavam a mesma angústia perante um Brasil imobilizado pelo poder militar.
Gil levou os versos iniciais da letra, que tinha escrito na véspera, uma sexta-feira da Paixão. Partindo desta analogia para descrever o suplício do povo brasileiro na ditadura, Chico continuou escrevendo, povoando a música com referências da sua vida cotidiana.
O cantor esclarece que a "bebida amarga" que a letra menciona é Fernet, uma bebida alcoólica italiana que Chico costumava beber naquelas noites. A casa de Buarque ficava na Lagoa Rodrigues de Freitas e os artistas ficavam na varanda, olhando as águas.
Esperavam ver emergir "o monstro da lagoa": o poder repressivo que estava escondido mas pronto para atacar a qualquer momento.
Conscientes do perigo que corriam e do clima sufocante vivido no Brasil, Chico e Gil escreveram um hino panfletário sustentando no jogo de palavras "cálice"/"cale-se". Enquanto artistas e intelectuais de esquerda, usaram suas vozes para denunciar a barbárie do autoritarismo.
Assim, no próprio título, a música faz alusão aos dois meios de opressão da ditadura. Por um lado, a agressão física, a tortura e a morte. Por outro, a ameaça psicológica, o medo, o controle do discurso e, por conseguinte, das vidas do povo brasileiro.
Chico Buarque
Retrato de Chico Buarque.
Francisco Buarque de Hollanda (Rio de Janeiro, 19 de junho de 1944) é um músico, compositor, dramaturgo e escritor, apontado como um dos grandes nomes da MPB (música popular brasileira). Autor de canções que se opunham ao regime autoritário vigente (como a famosa "Apesar de Você"), foi perseguido pela censura e pela polícia militar, acabando por se exilar em Itália em 1969.
Quando regressou ao Brasil, continuou denunciando o impacto social, econômico e cultural do totalitarismo, em músicas como "Construção" (1971) e "Cálice" (1973).


Ney Matogrosso - FM Rebeldia

terça-feira, 30 de outubro de 2018

Futuro 2 - Cristovam Buarque

Perdoem o atraso...


Divulgando...
Boa tarde povo!
Dia de Pensamento Inquieto! Continuamos com os textos anunciados na primeira postagem. Os mesmos serão divididos em várias postagens pra facilitar a leitura.
Obs.: Lembrando que temos uma novidade! Se você estiver sem tempo para ler o texto, a partir de agora disponibilizaremos um link para que você possa ouvir o texto sintetizado em MP3 (Haverá alguns sotaques visto que são sintetizadores estrangeiros)! O(s) Link(s) estará(ão) sempre entre o primeiro e o segundo parágrafo do texto postado.
Degustem!

 CONTINUANDO...

            Se há esses três sustos, dois de observações e um da lógica, da análise, podemos tirar algumas inferências de como será [seria] o futuro. Mas agora, pela primeira vez, podemos imaginar futuros diferentes.
            Um dos erros foi imaginar que só havia um futuro e que ele era idílico. A meu ver temos diante de nós um futuro que continua o percurso da técnica como sua razão de ser, e um outro futuro que vai ter a ética como seu controle e motor. Mas, se o futuro técnico tem futuro, então o futuro não morreu? Ele morreu por um detalhe. É que o futuro técnico, não por hipocrisia mas por crença, acreditou na igualdade e nos direitos humanos universais. A partir de agora é o momento da verdade. O futuro técnico, para continuar, vai ter de explicar, de maneira radical, não apenas a desigualdade, mas a diferença entre os seres humanos. E falo diferenças não no sentido que os antropólogos usam hoje, ou seja, do direito de ser diferente dos outros. Para o direito uso a palavra diversidade.
            Os homens têm de ser diversos entre eles. Não há dois iguais, mesmo dois carecas. Nós temos de ser diferentes nos valores, nos objetivos, nos propósitos e no comportamento humanista.
            Agora é a hora da verdade. Ou fazemos do planeta uma imensa África do Sul, em que um bilhão vai ter os lucros da modernidade e do futuro tal qual tem sido definido, enquanto quatro bilhões ficam esquecidos, marginalizados, ou vamos inventar outro futuro! Aí pode-se dizer: mas logo a África do Sul? Sim, digo África do Sul não sob o ponto de vista racial. Aquele país está deixando de fazer a exclusão racial para fazer, como o Brasil, uma exclusão social. A África do Sul vai se ‘brasilianizar’ e nós vamos nos vamos nos ‘sul-africanizar’, não no sentido racial, mas de se explicitar: os pobres não entram na praia, como muitos já dizem. Os pobres não entram nas cidades. Isso, mais dia, menos dia, será feito. Os pobres não entram nos hospitais, nas escolas, nos restaurantes, nas lojas de brinquedo. Isso já existe. Só que isso não se escreve. Vai ter de escrever, para manter os privilégios. Os pobres descobriram onde estão as coisas, e vão lá. Esse é o problema da Europa. Os pobres vão para a Europa. Os pobres vão para Ipanema, assim como os negros foram para os bairros na África do sul. Isso teve de ser interrompido. Não vejo outro caminho para continuar a modernidade técnica do que um imenso apartheid, ao longo de todo o planeta. Não é o Primeiro Mundo contra o Terceiro, mas dos ricos contra os pobres, estejam onde estiverem.
            Claro que isso só se manterá se se levar adiante, com rigidez, o projeto técnico, usando a biotecnologia para fazer com que esses quatro bilhões de excluídos não apenas sejam excluídos, mas sejam de fato diferentes. Isso já está sendo feito. Uma pessoa que come direito, que faz ginástica, que é robotizada por causa de operações, enxertos e transplantes, ponte de safena, vitamina, computador para dinamizar sua capacidade criativa, é igual àqueles meninos da Somália ou aos pobres das pequenas cidades brasileiras? Não. Pouco a pouco estamos construindo não pobres e ricos, mas duas espécies de seres humanos. Aí sim, o futuro terá sua chance de renascer, continuando o mesmo percurso de antes. Mas esse é um futuro incompatível com todos os sonhos que vêm do Iluminismo. É preciso lembrar que os maravilhosos mestres gregos que criaram tudo o que temos até hoje de belo e ético, os nossos padrinhos gregos já praticavam isso. Eles eram democratas. Os escravos eram bárbaros e não tinham de votar. Eles resolveram o problema, criando a diferença. O capitalismo e o Iluminismo tentaram manter a desigualdade abolindo a diferença: eliminou-se a escravidão, todos têm direitos iguais. Linda declaração das Nações Unidas. As constituições de cada país são maravilhosas. Mas isso se esgotou. Acho até que todos acreditavam que um dia todos seriam ricos e todos iriam consumir imensamente. Mas isso é impossível. A camada de ozônio reclama, as florestas reclamam, o planeta reclama. Não dá para aumentar o número de consumidores se não reduzirmos a quantidade de consumo. Como não se quer fazê-lo, assumamos, é o que muitos vão começar a dizer, e outros já praticam sem dizer, vamos retomar a diferença que havia antes do Iluminismo. Vamos dizer que há duas espécies de seres humanos.
            Obviamente não é este o futuro que eu gostaria. Esse futuro inventa um humanismo diferente. Para dizer a verdade, se esse cometa chegar daqui a duzentos anos e encontrar um planeta em que os homens são divididos através de uma construção, acho que era bom não tentarmos impedir que ele se choque com a Terra, porque não mereceríamos continuar o projeto. Então, vamos sonhar com o futuro novo. Acho que há possibilidade de um futuro novo, em que a ética defina o propósito. Claro que se eu dissesse quais são os valores dessa nova ética, eu estaria sem do autoritário e contrapondo-me ao primeiro dos itens que devem compor um propósito utópico subordinado à ética, que é a democracia com o direito ao uso da liberdade individual, todos eles, inclusive empresarial. Desde que essa democracia e essa liberdade casem com outro item de um projeto utópico em que não haja mais diferença entre os homens, em que eliminemos os apartheids que existem, de raças, de classes, de sexos, de religiões, etc.
            Acabar com o apartheid não é voltar ao conceito da igualdade plena da produção já supérflua, essa é a produção de bens básicos, e não tenho como fazer com que todos recebam, pois tecnicamente é impossível, e eticamente não me sinto obrigado a distribuir o supérfluo. Não posso é deixar que o supérfluo seja produzido às custas da redução do básico. Não posso tolerar, decentemente que esse básico não chegue a todos, o que já é possível, com o conhecimento técnico que temos.
            Então, eliminar o apartheid não é fazer com que todos possam e devam consumir igualmente, mas fazer com que ninguém seja excluído do básico. E se ninguém o for, pode haver desigualdade, mas não haverá diferença. E quais são os básicos? Primeiro: alimentação, ninguém passar fome. Claro que não é futuro ter uma Somália. Mas claro, que também não é futuro que o país que lhe der a salvação seja o mesmo país que dá comida e tira tudo pela taxa de juros devido à dívida externa. É uma hipocrisia, e é incrível que alguns acreditam que ela carrega uma dose de verdade. Não quero, com isso, que deixem de mandar comida para a Somália, mas que deixem de tirar comida dos brasileiros, pois somos obrigados a exportar alimentos, um país com fome, para pagar a dívida externa. Essa é a mesma hipocrisia quando se diz que não há apartheid, quando sabemos que há. O primeiro aspecto básico, então, e alimentação. Nada impede que este planeta tenha todos alimentados.
            O segundo é educação básica. Nada impede que possamos subir a média de escolaridade de um habitante do planeta de cinco para dez anos. Talvez isso não possa ser feito de imediato, mas devemos começar.
            O terceiro item é acesso aos transportes urbanos, já que uma parte considerável da população, neste futuro de hoje, mora nas cidades e tem de se deslocar para longas distâncias, o que antigamente camponeses só faziam em dias de festa. Não é moderno a pessoa não poder se utilizar do transporte e perder o trabalho por isso. Além de alimentação, educação básica e acesso a transporte, a saúde. Não pode ter futuro um país onde ainda há pessoas que morrem de cólera, de lepra. Não é preciso fazer cirurgia plástica de rejuvenescimento em todo mundo, transplantes, próteses, mas que pelo menos ninguém morra antes do tempo, de doenças ridiculamente anacrônicas.
            Finalmente, faz parte do fim do apartheid que cada família tenha um lugar do qual não se lhe expulse. E que este lugar seja limpo, saneado. Vejam como sou modesto nos meus sonhos. Não coloquei que todos tenham uma casa, pois acho que a casa vai ser um esforço pessoal de cada família, em acordos sociais e com a participação do governo. Nem colocaria a casa como parte de um projeto, para o fim do apartheid já. Mas, que ninguém expulse, pois se ninguém a expulsar, ela faz a casa.
            Então, temos como primeiro item da modernidade a democracia. O segundo seria o fim do apartheid com esses cinco objetivos. O terceiro seria ter o mínimo de eficiência econômica para fazer também o supérfluo, pelos vícios que o futuro tradicional já mostrou. O quarto seria que tudo isso deveria ser feito com equilíbrio ecológico. Não há futuro se destruirmos a ecologia. E se houver futuro com a ecologia destruída, graças a uma ciência superior, será um futuro, mesmo que viável, mais pobre do que o futuro com o verde da floresta.
            E quinto, não há futuro sem integração internacional. Não a integração como meio, conforme propõem os neoclássicos, mas como fim, como propósito.
            Vejam que este futuro não tem nenhum obstáculo que impeça sua construção. Não há nada que impeça que o planeta inteiro seja alfabetizado, que todas as crianças tenham acesso ao ensino básico. Nada impede que todos sejam alimentados. A produção de alimentos hoje é maior do que as necessidades de alimento do mundo. Nada impede o saneamento e a integração, mantendo a soberania de cada povo para manter a sua diversidade cultural. O que impede é que o futuro tradicional, que morreu, ainda não dá lugar ao outro. E esse futuro que morreu pôs como algo obsoleto a ética, a capacidade do homem de saber onde ele gostaria de chegar. Porque os homens acreditaram que já sabiam onde queriam chegar: à sociedade da modernidade técnica perfeita. Para que sonhar com o mundo, se já sabemos que ele vai ser bom e sabemos como será, ou seja, cheio de botões para apertarmos?
            Esse mundo está morrendo, mas não para um bilhão que controla tudo, e quer continuar. Ele está sendo um pouco inibido diante da necessidade de explicitar o apartheid. Ele vai entrar num processo de pensamento inquieto, de uma psicanálise geral desse planeta, de uma loucura global a discutir: continuamos a modernidade técnica implantando o apartheid, acreditamos ainda que algum dia todos terão tudo? Ou começamos a reorientar para uma outra modernidade, um outro futuro que seria subordinado a valores éticos?
            Desejo acreditar que encontraremos um caminho para esse apartheid ético. E o futuro vai renascer, até porque vamos renascer no gosto pelo sonho do futuro, e não apenas pela mecânica de construí-lo, como era até a década de 1980. Não havia mais sonhos. Voltará o sonho, o prazer que perdemos, não apenas de copiar e fazer o futuro, mas de inventá-lo também.
            Não vai bastar ser engenheiro do futuro. Temos a chance de ser também o seu arquiteto. Isso muda tudo, isso gera riqueza muito maior.
            Disse que tentaria especular o berço onde esse futuro poderia nascer. É óbvio que ele terá de ser um futuro planetário. Não haverá futuro no sentido fechado, mas ele vai nascer em algumas das sociedades existentes. Ele não vai surgir no ar, não em uma reunião das Nações Unidas, mas no pensamento coletivo de alguma coletividade, e as coletividades não são planetárias ainda. Na ECO 92 todos disseram que o planeta se reuniu. Não é verdade. Reuniram-se 130 nações. Nenhum daqueles chefes de Estado representava o planeta. No máximo, representavam os seus compatriotas, os seus eleitores.
            Se pegarmos as diferentes nações do mundo veremos que há uma com mais chance de ser o berço desse futuro, porque é uma que reflete melhor o retrato do conjunto do planeta. Talvez seja um desvio de nascimento. Eu acho que pode ser o Brasil. Mas vou justificar como não sendo um desvio de nascimento. Se o futuro tem de mudar uma tendência, tem de ser no lugar onde duas coisas aconteçam: a tendência tenha sido tentada; e ela não tenha dado certo.
            Nos pequenos países africanos, a tendência não foi tentada. Eles ainda têm direito a sonhar com o futuro técnico. Na Europa não deu tão errado, do ponto de vista deles. É neste país, e em alguns outros, que o futuro foi tentado e ao mesmo tempo deu errado como em nenhum outro. Nenhum país tentou durante cem anos, com tanta sistemática, o crescimento econômico pelas vias da técnica para aumentar o PIB per capita; nenhum tentou com tanto êxito, nem fracassou tão rotundamente na sociedade que criou. Dificilmente, se eu fosse parisiense, leria o livro de Bellamy percebendo os sustos que ele me provocou. Um parisiense não tomaria esses sustos.
            Os sustos acontecem no Brasil, mais do que em qualquer outro país. Portanto, temos a chance de fazer isso. O que nos impede de fazê-lo é, primeiro, o vício que temos com a modernidade técnica e depois o bloqueio ideológico de imaginar a possibilidade da modernidade ética.
            Derrubamos um presidente e lutamos para pôr os corruptos na cadeia. Mas ainda não demos um passo na luta para pôr as crianças na escola. Como se a ética fosse apenas a primeira parte, e não a segunda. Estamos com uma certa cegueira da ideologia de duzentos anos. A ideologia daquele futuro que ainda está em nossas cabeças. Não conseguimos avançar e ver um futuro diferente.
            O meu otimismo é que se não vimos ainda um futuro diferente, estamos tremendamente assustados com o futuro tradicional que, a meu ver, morreu.
            Para concluir, já que estamos falando em futuro, queria dizer que dentro desses objetivos da utopia de uma ética guardei um ponto deliberadamente. É que não há futuro sem o profundo gosto pelo sentimento da aventura de construí-lo. Uma das tragédias deste século foi acreditarmos que o futuro aconteceria espontaneamente. Bastava acordar, trabalhar e o PIB aumentaria. Perdemos o gosto de tomar uma nave na Espanha e descobrir um mundo novo. Perdemos o gosto de inventar. A ida à Lua não é um trabalho de conquistadores, mas de cientistas. Vejam a diferença. Perdemos o gosto pela aventura. Porque ali não é a aventura de quem vai, é a aventura de quem constrói. Perdemos a aventura da arquitetura e nos contentamos com a aventura da engenharia, trabalhando com base em encomendas formuladas por outros tempos e outros países. Essa dimensão da aventura está faltando em muitos de nós. Perdemos o sentimento da aventura de inventar um mundo novo.
            Este pensamento inquieto não seria possível, como eu disse, há duzentos anos. Mesmo hoje há menos chance de fazê-lo numa universidade europeia ou americana [estadunidense], em Mali ou no Senegal do que no Brasil, para não ser tão pernóstico, eu diria na América Latina. Aqui temos mais chances.
            Dentro deste continente, onde os dois sustos ocorrem, nenhum outro lugar tem mais chance de despertar para esses sustos do que a universidade. Pela sua multidisciplinaridade, pela obrigação de conviver com filósofos, historiadores e técnicos que dominaram este século, sobretudo com os ‘teólogos’ deste século terrível que foram – ponho no passado – os economistas, entre os quais me incluo.
            Está na hora de nos aventurarmos a inventar uma teologia nova. E quem não tiver o gosto pela aventura vai ver este discurso como um trabalho de Stephen King, como um conto de terror numa manhã de quinta-feira. Mas quem for capaz de dizer: talvez haja chance de imaginar a aventura de construir um futuro alternativo, terá a sorte de estar no planeta num final de século complicado, num país, Brasil, num momento trágico e, portanto, rico (como toda tragédia se bem administrada) de sua história, e numa universidade capaz de fazer um encontro sobre o pensamento inquieto.

Obs.: Os negritos itálicos são os destaques do texto original; os [  ], os negritos e os negritos vermelhos são destaques nossos.

SUGESTÕES DE LEITURAS
O choque do futuro – Alvin Toffler. Artenova, 1971.
A desordem do progresso - Cristovam Buarque. Paz e Terra, 1990, RJ.
Cem páginas para o futuro – Aurélio Peccei. Ed. UnB, 1981.
Um sentido do futuro – Jacob Bronowski. Ed. UnB. 1981.
A grande jornada – Amilcar Herrera. Paz e Terra, RJ.


quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Roda Viva | Fernando Haddad | 22/10/2018



Gente, precisamos positivar o vídeo do Haddad no Roda Viva no Youtube. Os bolsonaristas estão fazendo negativação em massa.
É só entrar e clicar no positivo ali. Rapidao
Vamos:

https://m.youtube.com/watch?v=8TSmH8XyX_o#menu