quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Futuro - Cristovam Buarque

Aqui estamos mesmo que atrasados!


GUETO DO PENSAMENTO INQUIETO
FUTURO
Cristovam Buarque – Economista, Professor da Universidade de Brasília, Coordenador do Doutorado Internacional em Economia Ecológica
O Pensamento Inquieto (Curso de Extensão Universitária a Distância). Organização de Clodomir de Souza Ferreira, João Antonio de Lima Esteves e Laura Maria Coutinho – Brasília: CEAD/Editora Universidade de Brasília, 1993. (pp. 79 a 92).

QUESTÕES PARA REFLEXÃO
O futuro não é apenas um conceito do tempo físico. O futuro é um sentimento do homem, que se tornou capaz de imaginá-lo a longo prazo e de agir para torná-lo real.
Inúmeras utopias previam um futuro idílico e maravilhoso para o mundo. A realidade atual oferece muito mais possibilidades de  um porvir assustador, marcado pela violência, pela desigualdade e pela destruição. O homem aprendeu a ter medo do futuro.
Neste texto, Cristóvam Buarque diz que “chegamos ao fim de um século que teve a grande aventura de fazer nascer e de matar o futuro”. Poderá o futuro renascer? Como poderemos recuperar o prazer de inventar o futuro? “Não há futuro para o homem sem um profundo gosto pela aventura de construí-lo”. O que pensamos nós, no Brasil, o eterno “país do futuro”?

            A notícia publicada nos jornais de que um cometa chamado Swifato está vindo em direção à Terra e que deverá chocar-se contra o planeta, em agosto do ano de 2126, gerou um susto em grande parte da humanidade. Gerou, inclusive, um esforço de tentar com que este cometa seja desviado da Terra e vá para outro lugar, ou exploda. Se esse cometa se chocar com a terra, as indicações dizem que será mais grave do que aquele que há 60 milhões de anos eliminou a vida dos dinossauros. E que dessa vez eliminaria a humanidade inteira. Se isso acontecer, o Futuro morre nesse dia de agosto desse ano do século seguinte ao próximo.
            Será que o fim da humanidade é a morte do futuro? Eu acho que sim. Porque, no dia seguinte ao choque com esse cometa, nada vai mudar no Universo. O Universo não vai nem ao menos tomar conhecimento de que uma insignificante espécie chamada Homem desapareceu. O Cosmo não saberá que tudo o que foi criado pela mente humana terá desaparecido, ou terá, em certa parte, ficando perdido num planeta sem vida ou com pouca vida, certamente, mas sem vida inteligente. O Sol vai continuar a nascer, a Lua vai continuar a rodar em torno da Terra, e todas as  galáxias continuarão se expandindo. Mas, a meu ver, o futuro terá morrido, porque o futuro não é um conceito de tempo físico. O futuro é um sentimento dos homens. O Sol, nascendo, terá um presente na hora em que nascer, no minuto seguinte e no outro minuto, mas não havverá um futuro prevendo que o Sol voltará a nascer no outro dia. Não haverá um futuro prevendo que um outro planeta voltará a se chocar alguns milhões de anos depois. Pois bem, o que quero deixar claro com isso, nas provocações que devem ser feitas dentro da ideia de um pensamento inquieto, é que o futuro não é uma variável física, o futuro é um sentimento humano. E, mais que isso, como segunda parte dessa inquietação que a Universidade de Brasília tende a desenvolver, quero dizer que o futuro não apenas é um sentimento que desaparecerá no momento em que os que têm esse sentimento morrem, como se esse sentimento fosse extremamente recente na espécie humana. Há poucas décadas o futuro já existia, mas na cabeça de poucos. Há alguns séculos ela já começava a nascer, mas na cabeça de ainda menos. E se olharmos mais atrás, há milhares de anos já existiam os Homens, já existia a cultura, mas o futuro não existia. O futuro nasceu em algum momento da História dos homens. Observando os temas do Pensamento Inquieto, veremos que, tirando Marx, que é um nome próprio, é uma pessoa, todos os demais temas já poderiam estar sendo debatidos em uma semana de Pensamento Inquieto na Sorbonne, do século XIII; em Cambridge, do século XIV, nas primeiras universidades latino-americanas do século XVI. Justiça, democracia, rebeldia, todos poderiam, mas duvido que o futuro pudesse ser debatido naquela época. O futuro não poderiam ser debatido porque ele não existia. Podem argumentar: mas alguns físicos pensavam o tempo, e até entendiam e já previam o futuro físico. Mas eles não tinham o sentimento do desejo do futuro.
            Quatro razões impediram o futuro de nascer na Idade Medieval e mesmo no século XVIII, já com o Iluminismo. O primeiro é porque futuro não é um sentimento, mas um desejo; não apenas é uma previsão, mas é uma previsão do bom e do belo. O futuro significa o bom, significa o belo, significa aquilo onde queremos chegar, tanto para nós quanto para uma geração anterior. Pois bem, até o século XVIII havia medo do futuro.
            Segundo, esse futuro era apenas os anos seguintes. Não havia o sentimento de futuro do longo prazo. Todas as utopias escritas, até uma do século XVIII, e só uma, localizavam-se em espaços. Nenhuma se localizava no futuro. O próprio nome utopia vem de uma ideia de lugar, ainda que signifique lugar nenhum. A Atlântida tem um lugar, o Eldorado estava em algum lugar. Todas as utopias eram localizadas em algum lugar, mas ninguém imaginava que o futuro fosse utópico, as pessoas imaginavam que o futuro fosse assustador. A primeira razão, por que não havia futuro, era o medo dele. A segunda, era que não havia prazer em pensar e viver o futuro. O prazer estava no passado. As pessoas curtiam mais o presente ou o passado.
            A sobrevivência, até recentemente – e isso é fundamental para entender nosso tema -, dependia mais das lembranças, das técnicas do passado do que dos sonhos com as possibilidades das técnicas do futuro. Para um camponês sobreviver, ele não tinha de imaginar técnicas futuras, ele tinha de não esquecer as técnicas que seus pais ensinaram. Completamente diferentes, os jovens agricultores dos países ricos, cada vez mais, a partir deste século, buscam esquecer o que aprenderam no passado e buscam sonhar e executar novas formas de sobrevivência, consideradas cada vez mais simples daqui para a frente. Vejam como temos diversas razões que demonstram que não era fácil existir o futuro. Havia medo, não havia prazer, havia uma prisão pela luta da sobrevivência com as técnicas que vinham do passado, e, finalmente, não havia como prever. Era impossível no século passado, mesmo até 1950, 1960 ou 1970, a perfeição da previsão de que um cometa se chocaria com a Terra. O cometa é um pequeno pedaço de pedra, mesmo com 10 Km como tem esse e vai se chocar, nessa imensidão de espaço, com a Terra. Essa previsão, com esta sofisticação, com esta exatidão, seria impossível sem os computadores de hoje. Além disso, sem os grandes telescópios, não seria perceptível. Então, vejam que quatro fenômenos foram superados, quatro características foram superadas para fazer com que o futuro pudesse ser parido nesse processo de evolução cultural. A sobrevivência passou a depender mais do futuro do que do passado, na medida em que a Revolução Industrial começou a oferecer maneiras melhores, mais fáceis e eficientes de produzir, simplificando a luta pela sobrevivência.
            Surgiu um otimismo muito grande em relação ao futuro e o prazer de especular sobre ele. A ficção científica não existia há duzentos anos, ainda que alguns gregos pudessem ter falado sobre haver ou não vida na Lua, se era possível ou impossível ir lá, mas não existia como categoria das artes literárias, ainda que hoje em dia não seja vista como aquelas categorias com mais refinamento literário pelos conservadores.
            A capacidade de prever veio de uma maneira tão radical que se mostrou estúpida; os homens passaram a acreditar tanto em uma tendência, que passaram a ter certeza de que o futuro seria uma maravilha. Surgiu o futurismo e a futurologia: o futurismo com o manifesto de 1907, a futurologia com os trabalhos de matemática nos EUA, a partir das décadas de 1940 e 1947, e sobretudo 1960. Mas um conceito fez o futuro possível, um conceito que se chocava com o passado: o conceito de que o tempo é um processo fluído, o tempo é um rio que escoa, quando antes todos achavam que o tempo era uma coisa que circulava. Um camponês do século passado não conseguia perceber o tempo além das quatro estações. Ele se fechava a cada 365 dias. Mesmo que eles imaginassem o futuro de seus filhos, era um futuro visto na luta pela sobrevivência a cada instante da resistência para não morrer nas guerras, nas fogueiras das inquisições.  Não havia conceito de fluidez, de permanência. O tempo era circular, coisa que acontece até hoje nas culturas primitivas dos índios, dos camponeses dos países sem interligação com o Ocidente. Para os nossos índios, isolados, o tempo era circular, ainda mais se não há prazer em pensá-lo, se a sobrevivência depende do passado, e se não há como prevê-lo. A partir de um certo momento – e isto vem com a Revolução Industrial -, o tempo passa a ser perceptível com a sua fluidez, com a sua permanência. Então, o futuro nasceu aí. O futuro nasceu pelo otimismo, pela previsibilidade; o futuro nasceu pelo sentido do tempo fluindo, e o futuro nasceu porque ele passou a dar prazer ao homem, que passou a dar  muito menos valor ao passado. Até quando se coleciona obras de arte do passado, se visa enriquecer no futuro. O futuro passou a ser o centro, porque o futuro nasceu de uma maneira quase perfeita no final do século passado e no começo deste.
CONTINUA NA PRÓXIMA QUARTA...
Obs.: Os negritos itálicos são os destaques do texto original; os [  ], os negritos e os negritos vermelhos são destaques nossos.


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