terça-feira, 30 de outubro de 2018

Futuro 2 - Cristovam Buarque

Perdoem o atraso...


Divulgando...
Boa tarde povo!
Dia de Pensamento Inquieto! Continuamos com os textos anunciados na primeira postagem. Os mesmos serão divididos em várias postagens pra facilitar a leitura.
Obs.: Lembrando que temos uma novidade! Se você estiver sem tempo para ler o texto, a partir de agora disponibilizaremos um link para que você possa ouvir o texto sintetizado em MP3 (Haverá alguns sotaques visto que são sintetizadores estrangeiros)! O(s) Link(s) estará(ão) sempre entre o primeiro e o segundo parágrafo do texto postado.
Degustem!

 CONTINUANDO...

            Se há esses três sustos, dois de observações e um da lógica, da análise, podemos tirar algumas inferências de como será [seria] o futuro. Mas agora, pela primeira vez, podemos imaginar futuros diferentes.
            Um dos erros foi imaginar que só havia um futuro e que ele era idílico. A meu ver temos diante de nós um futuro que continua o percurso da técnica como sua razão de ser, e um outro futuro que vai ter a ética como seu controle e motor. Mas, se o futuro técnico tem futuro, então o futuro não morreu? Ele morreu por um detalhe. É que o futuro técnico, não por hipocrisia mas por crença, acreditou na igualdade e nos direitos humanos universais. A partir de agora é o momento da verdade. O futuro técnico, para continuar, vai ter de explicar, de maneira radical, não apenas a desigualdade, mas a diferença entre os seres humanos. E falo diferenças não no sentido que os antropólogos usam hoje, ou seja, do direito de ser diferente dos outros. Para o direito uso a palavra diversidade.
            Os homens têm de ser diversos entre eles. Não há dois iguais, mesmo dois carecas. Nós temos de ser diferentes nos valores, nos objetivos, nos propósitos e no comportamento humanista.
            Agora é a hora da verdade. Ou fazemos do planeta uma imensa África do Sul, em que um bilhão vai ter os lucros da modernidade e do futuro tal qual tem sido definido, enquanto quatro bilhões ficam esquecidos, marginalizados, ou vamos inventar outro futuro! Aí pode-se dizer: mas logo a África do Sul? Sim, digo África do Sul não sob o ponto de vista racial. Aquele país está deixando de fazer a exclusão racial para fazer, como o Brasil, uma exclusão social. A África do Sul vai se ‘brasilianizar’ e nós vamos nos vamos nos ‘sul-africanizar’, não no sentido racial, mas de se explicitar: os pobres não entram na praia, como muitos já dizem. Os pobres não entram nas cidades. Isso, mais dia, menos dia, será feito. Os pobres não entram nos hospitais, nas escolas, nos restaurantes, nas lojas de brinquedo. Isso já existe. Só que isso não se escreve. Vai ter de escrever, para manter os privilégios. Os pobres descobriram onde estão as coisas, e vão lá. Esse é o problema da Europa. Os pobres vão para a Europa. Os pobres vão para Ipanema, assim como os negros foram para os bairros na África do sul. Isso teve de ser interrompido. Não vejo outro caminho para continuar a modernidade técnica do que um imenso apartheid, ao longo de todo o planeta. Não é o Primeiro Mundo contra o Terceiro, mas dos ricos contra os pobres, estejam onde estiverem.
            Claro que isso só se manterá se se levar adiante, com rigidez, o projeto técnico, usando a biotecnologia para fazer com que esses quatro bilhões de excluídos não apenas sejam excluídos, mas sejam de fato diferentes. Isso já está sendo feito. Uma pessoa que come direito, que faz ginástica, que é robotizada por causa de operações, enxertos e transplantes, ponte de safena, vitamina, computador para dinamizar sua capacidade criativa, é igual àqueles meninos da Somália ou aos pobres das pequenas cidades brasileiras? Não. Pouco a pouco estamos construindo não pobres e ricos, mas duas espécies de seres humanos. Aí sim, o futuro terá sua chance de renascer, continuando o mesmo percurso de antes. Mas esse é um futuro incompatível com todos os sonhos que vêm do Iluminismo. É preciso lembrar que os maravilhosos mestres gregos que criaram tudo o que temos até hoje de belo e ético, os nossos padrinhos gregos já praticavam isso. Eles eram democratas. Os escravos eram bárbaros e não tinham de votar. Eles resolveram o problema, criando a diferença. O capitalismo e o Iluminismo tentaram manter a desigualdade abolindo a diferença: eliminou-se a escravidão, todos têm direitos iguais. Linda declaração das Nações Unidas. As constituições de cada país são maravilhosas. Mas isso se esgotou. Acho até que todos acreditavam que um dia todos seriam ricos e todos iriam consumir imensamente. Mas isso é impossível. A camada de ozônio reclama, as florestas reclamam, o planeta reclama. Não dá para aumentar o número de consumidores se não reduzirmos a quantidade de consumo. Como não se quer fazê-lo, assumamos, é o que muitos vão começar a dizer, e outros já praticam sem dizer, vamos retomar a diferença que havia antes do Iluminismo. Vamos dizer que há duas espécies de seres humanos.
            Obviamente não é este o futuro que eu gostaria. Esse futuro inventa um humanismo diferente. Para dizer a verdade, se esse cometa chegar daqui a duzentos anos e encontrar um planeta em que os homens são divididos através de uma construção, acho que era bom não tentarmos impedir que ele se choque com a Terra, porque não mereceríamos continuar o projeto. Então, vamos sonhar com o futuro novo. Acho que há possibilidade de um futuro novo, em que a ética defina o propósito. Claro que se eu dissesse quais são os valores dessa nova ética, eu estaria sem do autoritário e contrapondo-me ao primeiro dos itens que devem compor um propósito utópico subordinado à ética, que é a democracia com o direito ao uso da liberdade individual, todos eles, inclusive empresarial. Desde que essa democracia e essa liberdade casem com outro item de um projeto utópico em que não haja mais diferença entre os homens, em que eliminemos os apartheids que existem, de raças, de classes, de sexos, de religiões, etc.
            Acabar com o apartheid não é voltar ao conceito da igualdade plena da produção já supérflua, essa é a produção de bens básicos, e não tenho como fazer com que todos recebam, pois tecnicamente é impossível, e eticamente não me sinto obrigado a distribuir o supérfluo. Não posso é deixar que o supérfluo seja produzido às custas da redução do básico. Não posso tolerar, decentemente que esse básico não chegue a todos, o que já é possível, com o conhecimento técnico que temos.
            Então, eliminar o apartheid não é fazer com que todos possam e devam consumir igualmente, mas fazer com que ninguém seja excluído do básico. E se ninguém o for, pode haver desigualdade, mas não haverá diferença. E quais são os básicos? Primeiro: alimentação, ninguém passar fome. Claro que não é futuro ter uma Somália. Mas claro, que também não é futuro que o país que lhe der a salvação seja o mesmo país que dá comida e tira tudo pela taxa de juros devido à dívida externa. É uma hipocrisia, e é incrível que alguns acreditam que ela carrega uma dose de verdade. Não quero, com isso, que deixem de mandar comida para a Somália, mas que deixem de tirar comida dos brasileiros, pois somos obrigados a exportar alimentos, um país com fome, para pagar a dívida externa. Essa é a mesma hipocrisia quando se diz que não há apartheid, quando sabemos que há. O primeiro aspecto básico, então, e alimentação. Nada impede que este planeta tenha todos alimentados.
            O segundo é educação básica. Nada impede que possamos subir a média de escolaridade de um habitante do planeta de cinco para dez anos. Talvez isso não possa ser feito de imediato, mas devemos começar.
            O terceiro item é acesso aos transportes urbanos, já que uma parte considerável da população, neste futuro de hoje, mora nas cidades e tem de se deslocar para longas distâncias, o que antigamente camponeses só faziam em dias de festa. Não é moderno a pessoa não poder se utilizar do transporte e perder o trabalho por isso. Além de alimentação, educação básica e acesso a transporte, a saúde. Não pode ter futuro um país onde ainda há pessoas que morrem de cólera, de lepra. Não é preciso fazer cirurgia plástica de rejuvenescimento em todo mundo, transplantes, próteses, mas que pelo menos ninguém morra antes do tempo, de doenças ridiculamente anacrônicas.
            Finalmente, faz parte do fim do apartheid que cada família tenha um lugar do qual não se lhe expulse. E que este lugar seja limpo, saneado. Vejam como sou modesto nos meus sonhos. Não coloquei que todos tenham uma casa, pois acho que a casa vai ser um esforço pessoal de cada família, em acordos sociais e com a participação do governo. Nem colocaria a casa como parte de um projeto, para o fim do apartheid já. Mas, que ninguém expulse, pois se ninguém a expulsar, ela faz a casa.
            Então, temos como primeiro item da modernidade a democracia. O segundo seria o fim do apartheid com esses cinco objetivos. O terceiro seria ter o mínimo de eficiência econômica para fazer também o supérfluo, pelos vícios que o futuro tradicional já mostrou. O quarto seria que tudo isso deveria ser feito com equilíbrio ecológico. Não há futuro se destruirmos a ecologia. E se houver futuro com a ecologia destruída, graças a uma ciência superior, será um futuro, mesmo que viável, mais pobre do que o futuro com o verde da floresta.
            E quinto, não há futuro sem integração internacional. Não a integração como meio, conforme propõem os neoclássicos, mas como fim, como propósito.
            Vejam que este futuro não tem nenhum obstáculo que impeça sua construção. Não há nada que impeça que o planeta inteiro seja alfabetizado, que todas as crianças tenham acesso ao ensino básico. Nada impede que todos sejam alimentados. A produção de alimentos hoje é maior do que as necessidades de alimento do mundo. Nada impede o saneamento e a integração, mantendo a soberania de cada povo para manter a sua diversidade cultural. O que impede é que o futuro tradicional, que morreu, ainda não dá lugar ao outro. E esse futuro que morreu pôs como algo obsoleto a ética, a capacidade do homem de saber onde ele gostaria de chegar. Porque os homens acreditaram que já sabiam onde queriam chegar: à sociedade da modernidade técnica perfeita. Para que sonhar com o mundo, se já sabemos que ele vai ser bom e sabemos como será, ou seja, cheio de botões para apertarmos?
            Esse mundo está morrendo, mas não para um bilhão que controla tudo, e quer continuar. Ele está sendo um pouco inibido diante da necessidade de explicitar o apartheid. Ele vai entrar num processo de pensamento inquieto, de uma psicanálise geral desse planeta, de uma loucura global a discutir: continuamos a modernidade técnica implantando o apartheid, acreditamos ainda que algum dia todos terão tudo? Ou começamos a reorientar para uma outra modernidade, um outro futuro que seria subordinado a valores éticos?
            Desejo acreditar que encontraremos um caminho para esse apartheid ético. E o futuro vai renascer, até porque vamos renascer no gosto pelo sonho do futuro, e não apenas pela mecânica de construí-lo, como era até a década de 1980. Não havia mais sonhos. Voltará o sonho, o prazer que perdemos, não apenas de copiar e fazer o futuro, mas de inventá-lo também.
            Não vai bastar ser engenheiro do futuro. Temos a chance de ser também o seu arquiteto. Isso muda tudo, isso gera riqueza muito maior.
            Disse que tentaria especular o berço onde esse futuro poderia nascer. É óbvio que ele terá de ser um futuro planetário. Não haverá futuro no sentido fechado, mas ele vai nascer em algumas das sociedades existentes. Ele não vai surgir no ar, não em uma reunião das Nações Unidas, mas no pensamento coletivo de alguma coletividade, e as coletividades não são planetárias ainda. Na ECO 92 todos disseram que o planeta se reuniu. Não é verdade. Reuniram-se 130 nações. Nenhum daqueles chefes de Estado representava o planeta. No máximo, representavam os seus compatriotas, os seus eleitores.
            Se pegarmos as diferentes nações do mundo veremos que há uma com mais chance de ser o berço desse futuro, porque é uma que reflete melhor o retrato do conjunto do planeta. Talvez seja um desvio de nascimento. Eu acho que pode ser o Brasil. Mas vou justificar como não sendo um desvio de nascimento. Se o futuro tem de mudar uma tendência, tem de ser no lugar onde duas coisas aconteçam: a tendência tenha sido tentada; e ela não tenha dado certo.
            Nos pequenos países africanos, a tendência não foi tentada. Eles ainda têm direito a sonhar com o futuro técnico. Na Europa não deu tão errado, do ponto de vista deles. É neste país, e em alguns outros, que o futuro foi tentado e ao mesmo tempo deu errado como em nenhum outro. Nenhum país tentou durante cem anos, com tanta sistemática, o crescimento econômico pelas vias da técnica para aumentar o PIB per capita; nenhum tentou com tanto êxito, nem fracassou tão rotundamente na sociedade que criou. Dificilmente, se eu fosse parisiense, leria o livro de Bellamy percebendo os sustos que ele me provocou. Um parisiense não tomaria esses sustos.
            Os sustos acontecem no Brasil, mais do que em qualquer outro país. Portanto, temos a chance de fazer isso. O que nos impede de fazê-lo é, primeiro, o vício que temos com a modernidade técnica e depois o bloqueio ideológico de imaginar a possibilidade da modernidade ética.
            Derrubamos um presidente e lutamos para pôr os corruptos na cadeia. Mas ainda não demos um passo na luta para pôr as crianças na escola. Como se a ética fosse apenas a primeira parte, e não a segunda. Estamos com uma certa cegueira da ideologia de duzentos anos. A ideologia daquele futuro que ainda está em nossas cabeças. Não conseguimos avançar e ver um futuro diferente.
            O meu otimismo é que se não vimos ainda um futuro diferente, estamos tremendamente assustados com o futuro tradicional que, a meu ver, morreu.
            Para concluir, já que estamos falando em futuro, queria dizer que dentro desses objetivos da utopia de uma ética guardei um ponto deliberadamente. É que não há futuro sem o profundo gosto pelo sentimento da aventura de construí-lo. Uma das tragédias deste século foi acreditarmos que o futuro aconteceria espontaneamente. Bastava acordar, trabalhar e o PIB aumentaria. Perdemos o gosto de tomar uma nave na Espanha e descobrir um mundo novo. Perdemos o gosto de inventar. A ida à Lua não é um trabalho de conquistadores, mas de cientistas. Vejam a diferença. Perdemos o gosto pela aventura. Porque ali não é a aventura de quem vai, é a aventura de quem constrói. Perdemos a aventura da arquitetura e nos contentamos com a aventura da engenharia, trabalhando com base em encomendas formuladas por outros tempos e outros países. Essa dimensão da aventura está faltando em muitos de nós. Perdemos o sentimento da aventura de inventar um mundo novo.
            Este pensamento inquieto não seria possível, como eu disse, há duzentos anos. Mesmo hoje há menos chance de fazê-lo numa universidade europeia ou americana [estadunidense], em Mali ou no Senegal do que no Brasil, para não ser tão pernóstico, eu diria na América Latina. Aqui temos mais chances.
            Dentro deste continente, onde os dois sustos ocorrem, nenhum outro lugar tem mais chance de despertar para esses sustos do que a universidade. Pela sua multidisciplinaridade, pela obrigação de conviver com filósofos, historiadores e técnicos que dominaram este século, sobretudo com os ‘teólogos’ deste século terrível que foram – ponho no passado – os economistas, entre os quais me incluo.
            Está na hora de nos aventurarmos a inventar uma teologia nova. E quem não tiver o gosto pela aventura vai ver este discurso como um trabalho de Stephen King, como um conto de terror numa manhã de quinta-feira. Mas quem for capaz de dizer: talvez haja chance de imaginar a aventura de construir um futuro alternativo, terá a sorte de estar no planeta num final de século complicado, num país, Brasil, num momento trágico e, portanto, rico (como toda tragédia se bem administrada) de sua história, e numa universidade capaz de fazer um encontro sobre o pensamento inquieto.

Obs.: Os negritos itálicos são os destaques do texto original; os [  ], os negritos e os negritos vermelhos são destaques nossos.

SUGESTÕES DE LEITURAS
O choque do futuro – Alvin Toffler. Artenova, 1971.
A desordem do progresso - Cristovam Buarque. Paz e Terra, 1990, RJ.
Cem páginas para o futuro – Aurélio Peccei. Ed. UnB, 1981.
Um sentido do futuro – Jacob Bronowski. Ed. UnB. 1981.
A grande jornada – Amilcar Herrera. Paz e Terra, RJ.


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