quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Futuro 1 - Cristovam Buarque


Divulgando...
Boa tarde povo!
Dia de Pensamento Inquieto! Continuamos com os textos anunciados na primeira postagem. Os mesmos serão divididos em várias postagens pra facilitar a leitura.
Obs.: Lembrando que temos uma novidade! Se você estiver sem tempo para ler o texto, a partir de agora disponibilizaremos um link para que você possa ouvir o texto sintetizado em MP3 (Haverá alguns sotaques visto que são sintetizadores estrangeiros)! O(s) Link(s) estará(ão) sempre entre o primeiro e o segundo parágrafo do texto postado.
Degustem!


CONTINUANDO...

            Há um livro, de um crítico de arte, que se chama O choque do novo, em que ele mostra que todas as grandes invenções que temos hoje, as básicas, ocorreram entre 1885 e 1910. Todas. O fonógrafo, o telefone, o carro, a relatividade, os raios-X, tudo. Acho que foi aí que o futuro nasceu. O futuro nasceu nesse momento; ainda que fosse algo perceptível por poucos e não algo na consciência coletiva da sociedade. Mas ele nasceu aí. Se ele nasceu, ele teve um processo de evolução. Porém, o mais trágico é que, do jeito que ele nasceu, naquele período – e podemos localizar um lugar onde ele nasce para depois voltarmos a discutir o lugar -, ele nasceu nos EUA, ele nasceu na Europa, ele nasceu no Ocidente, com um conceito radical do tempo fluido como rio, e do tempo levando a uma sociedade melhor, mais eficiente, mais rica inclusive. Pois bem, se o tempo nasceu naquele momento, temos de lamentar e dizer que, aparentemente, o futuro também morreu no século XX. Se analisarmos o que aconteceu ao longo deste século, sobretudo ao longo dessas últimas décadas, vamos perceber que aquelas características que falei sofreram uma reversão. Por exemplo: a ideia de que a sobrevivência era cada vez mais fácil no futuro ficou prejudicada pelas próprias previsões feitas, entre outras, pelo grupo de Roma, que mostrou que havia limites ao crescimento. O futuro nada tinha a ver com aquele idílio que se imaginava no final do século, e neste século, se retirarmos o medo da guerra nuclear. Foram os anos de maior ebulição e crença no futuro. A partir da década de 1960, diversos fenômenos começam a nos levar a sentir que o futuro não era aquele; logo, não era o futuro, era apenas um tempo adiante. Se não havia desejo dele, já não era futuro no sentido que estou colocando aqui. Passou a haver medo do futuro. A partir das décadas de 1960 e 1970, há o medo do futuro. O prazer que se tinha no futuro diminuiu. A ficção científica (um dos grandes indicadores de como vemos o futuro), que, salvo 1984, só tinha livros que colocavam o futuro como idílio, passou a se dedicar ao terror. Hoje assistimos mais os filmes pelo terror do que pela imaginação do futuro, porque o futuro ficou assustador. Todo o futuro era visto como de paz, de tranquilidade. Hoje, temos uma violência crescente. Todos os sonhos dos utopistas, dos socialistas utópicos, dos socialistas científicos, dos capitalistas eram de que o mundo do futuro seria um mundo sem desigualdade social. Uma das bases do capitalismo é que o mercado tende a eliminar as desigualdades. A base fundamental do socialismo é acabar com as desigualdades. Quando analisamos o mundo de hoje, comparando com o mundo do começo do século, quando o futuro nasceu, percebemos que o sonho da igualdade morreu.
            A desigualdade entre uma pessoa de classe média hoje e um pobre é maior do que entre um rei no século XVII e um camponês. Não digo que um pobre hoje não está melhor do que um camponês, pois pelo menos quando consegue ir ao dentista existe anestesia, coisa que não havia naquela época. Mas, em compensação, o rei perdia dentes e os pobres já não perdem [tanto quanto o rei naquela época]. Não digo que era mais fácil para um camponês andar a pé do que para um pobre andar de ônibus. Mas, milhões de pessoas no mundo são obrigadas a andar a pé porque não podem pagar a passagem. Mas as classes média e alta têm automóvel, e os reis não tinham. Não vou dizer que os palácios dos reis eram piores do que as casas da classe média hoje. Mas a choupana dos pobres não é diferente das choupanas dos camponeses. E as casas das classes média e alta podem não ser maiores do que os palácios da época, mas têm mais facilidades. A desigualdade aumentou. Então, o medo aumentou, ressurgiu. A violência cresceu. A arte entrou no sentimento de esgotamento. O livro O choque do novo mostra a riqueza do final do século passado e uma certa pobreza em criatividade neste século. Segundo ele, nenhum outro final de século, nos últimos quinhentos anos, desde o Renascimento, teve tão poucas inovações nas artes quanto este.
            E não é só isso. O sonho do infinito crescimento morreu com a crise ecológica. Percebemos que, ou destruímos a ecologia para continuar a crescer ou diminuímos o crescimento para respeitar a ecologia. Nos costumes houve o fim de alguns dos sonhos do futuro. O erotismo livre, que foi uma das conquistas deste século, a diferença entre casamento, sexo e erotismo entra em choque com a crise provocada pela AIDS. Vejam que as duas categorias que mais sofriam no passado com as repressões sexuais, os homossexuais e as mulheres, são as que estão pagando o maior preço entre aquele grupo de risco por razões sexuais neste final de século com a nova doença.
            Então, aquele sonho diminuiu. A ideia de internacionalismo, que estava presente em todos os sonhos de futuro, também nos dá a sensação de que morreu. Era mais fácil entrar na França há dez anos do que hoje.
            As exigências para ser imigrante nos países ricos fazem com que seja quase impossível o enorme fluxo que havia no mundo. Se analisarmos o fluxo que houve, mesmo sob a forma de escravidão, nos séculos XVI a XIX; se analisarmos os fluxos migratórios no século XVII e no começo deste século, da Europa para as Américas, veremos que esse sonho de uma grande integração, de repente, está sendo cortado. Porque os países ricos procuram se proteger para evitar a invasão dos países pobres. Morreu, então, um dado fundamental do futuro, que era a mobilidade das pessoas deste planeta, entre as nações deste planeta, fazendo um mundo integrado e uma única nação. Mais ainda: a física, que trabalhou todo o tempo tirando a ideia do tempo circular e pondo a ideia do tempo fluido, a própria física descobre, no final do século, que o tempo é circular. Não mais em quatro estações, mas em vinte bilhões de anos.
            Mas descobre que o Universo se expande e se contrai. Não deixa de ser um tempo circular. A dimensão é maior do que pensam os textos budistas, é maior do que os textos astecas, é maior, obviamente, do que um camponês da Idade Média, mas não deixa de ser um ciclo. O homem tem de ser pessimista, porque, seja como for, em alguns bilhões de anos, haverá um encurtamento do Universo que se transformará num outro ovo cósmico. A física, hoje, é um indicador de que não há mais futuro eterno. Isso é fundamental, porque foi a física que tirou o otimismo da eternidade.
            Então chegamos ao final de um século que teve a grande aventura de fazer nascer e matar o futuro. Essa é a nossa realidade. Mas com um detalhe diferente: chegamos ao século com o futuro morto, mas com os homens vivos e percebendo isso.
            Pararíamos, porém, de forma incompleta o Pensamento Inquieto se não discutíssemos três coisas mais: a lógica da morte do futuro, as possibilidades de renascimento do futuro e o lugar onde ele pode renascer.
            Do ponto de vista da lógica, começam a existir sintomas do motivo pelo qual o futuro morreu. Li recentemente um livro que muito me impressionou: Daqui a cem anos. Foi escrito e, 1887 por um americano [estadunidense], Edward Bellamy, que decidiu fazer um livro sobre como seria o ano 2000. Ele errou em tudo! Errou porque foi incapaz de imaginar as maravilhas que a técnica criaria. Errou pela falta de visão, mas errou ainda mais por ser incapaz de perceber que o mundo não seria um paraíso. Errou por excesso de visão. Ele descreve um mundo sem desigualdades, com abundância, com um processo tão democrático que não seria preciso eleições, com organização plena, sem banqueiros – a primeira coisa que viu ser fundamental acabar -, sem exploração, enfim. Tudo seria perfeito socialmente. A única novidade técnica que ele imaginou foi que as pessoas poderiam ouvir música em casa, mesmo assim, pelo telefone. A orquestra tinha de estar tocando, e não dava para transmitir a grandes distâncias. Seriam necessárias quatro orquestras, pelo menos, numa cidade como Boston, onde ocorreu a história.
            Vejam como ele foi acanhado nas técnicas, e ousado na utopia. Aí está, talvez, a explicação da morte do futuro.
            Não é diferente do que Marx, sem fazer um romance, que também errou nesse sentido. Ou nós, os intérpretes de Marx, erramos!
            Acontece que nós, que temos a sorte de viver este momento, temos dois grandes sustos quando atentos ao que acontece no mundo, e comparando o tempo de hoje com o começo do século. O primeiro é um susto positivo: é inacreditável como foi possível esse animal esquisito, chamado homem, ter realizado o que realizou com o conhecimento que adquiriu em cem anos. Nenhum escritor de ficção científica do começo do século imaginou isso. O maior gênio de ficção científica, Júlio Verne, imaginou uma verdadeira geringonça que é um submarino. Ele falou em ir à Lua. Já viram o foguete que ele imaginou? Ele não imaginou que seria televisionado ao vivo, o que é mais importante de tudo. Até 1960 nenhum cientista chegou a pensar que isso fosse possível. Hoje, não só imagens da Lua são transmitidas ao vivo, mas tudo! Participei de um debate num auditório enorme em que Edgar Morin, um francês, em Paris, e nós, aqui, nos comunicávamos.
            Alguém poderia imaginar um transplante de coração? Isso hoje é assunto superado. Existe até um robozinho para limpar as veias. Existe também cirurgia para corrigir miopia. Alguém no começo do século poderia prever que haveria microfone, essa parafernália toda? Ninguém imaginaria isso!
            Este é um aspecto surpreendente que verificamos na leitura desse livro. O autor não imaginou nada. Ele imaginou em sua utopia, por exemplo, que não se precisaria de dinheiro, mas de cartão de crédito. Mas o cartão seria de papelão. Ele não imaginou plástico nem informática. Susto que realmente espanta. Mas tem outro susto: ninguém, no começo do século, imaginava que ia ser um desastre utópico o final do século. Os visionários do começo do século propunham para o ano 2000 um paraíso, de acordo com os padrões dos valores básicos do Humanismo: sem violência, sem desigualdade, sem medo do futuro. É o contrário do que vemos.
            Esses dois sustos juntam-se para propor uma lógica. Em algum momento deste século colocamos a técnica na frente da utopia. Achamos que o motor nos levaria a um destino bom. E o motor fez o caminho que lhe interessava, não conduziu os homens para onde eles queriam. Ao contrário, quando os homens estavam montados no motor, ele os levou para um desastre utópico.
            Isso daria, como lógica da morte do futuro, o fato de que pensamos na técnica, sonhamos com utopia, mas esquecemos dos valores éticos para regular as técnicas. Eu perguntaria: por que Marx não percebeu isso? [ponto a ser refletido: o que é isso que Marx não percebeu?] Por que esse Bellamy também não percebeu? Penso que eles não perceberam – e aí vai estar a morte do futuro, é aí que ele vai descobrir que está com algum problema -, não descobriram que as técnicas seriam usadas tanto para inventar novas máquinas quanto para inventar novos brinquedos de consumo. Bellamy errou porque não imaginou a ganância consumista dos homens. Por que havia abundância no mundo de Bellamy? Porque só havia comida e roupa. E para que mais? As máquinas mecanizadas gerariam comida e roupas suficientes, e livros, óculos e pequenas coisas básicas para todos. Mas quando, além de roupa e comida, temos que fazer aparelhos de videocassete, de Cd, automóvel – e a cada ano um modelo diferente – e milhões de novos produtos, acho que a técnica priorizou a dinâmica do consumo em vez de priorizar a dinâmica da liberdade. A liberdade das necessidades foi suplantada pela ampliação do consumo.
            Aí começamos a errar. A lógica, portanto, está em que nós, neste século em que aprendemos a dominar o mundo, perdemos a capacidade de dominar o uso do domínio do mundo. Nós passamos a ter técnicas para dominar o mundo, mas nós fomos manipulados pela ganância que nós tínhamos de manipular o mundo para aumentar o consumo, e não para outros valores. A morte do futuro, portanto, viria de um desvio humano, de uma prioridade subordinada à técnica, em vez de definir uma ética ou ter o sentimento de uma ética que dominasse a técnica. Esse foi o erro. Deixamos de definir o futuro. Neste século, acreditamos tanto no futuro que esquecemos de defini-lo. Nesse ponto continuamos tão primitivos quanto os milenaristas do judaísmo antigo e do cristianismo, que, no começo, de fato, já percebiam o tempo fluindo, até porque acreditavam na volta de Cristo. Mas o tempo fluía até o juízo final. Logo, não era o futuro. O juízo final não é o futuro, mas o esgotamento do tempo. É diferente.
            Então, deixamos de imaginar que o futuro poderia se administrado, que poderia ter definições, que para ser utópico tinha de ser definido com base em valores éticos. Se aceitamos essa ou outra proposta, acho que podemos começar a discutir o quarto ponto: depois do nascimento, depois da morte, depois do dia da lógica do futuro, o renascimento.
            Se eu concluísse a discussão agora, obviamente seria uma análise pessimista. Até porque eu, por um desvio qualquer, patológico ou genético, sou otimista.
            Então, estamos diante de um momento que propicia o renascimento. Eu sou otimista, mas tento não ser idiota. E a diferença entre o otimista e o idiota é que o idiota determina o prazo em que vai realizar um otimista dentro do mínimo de decência do uso do pensamento.
            Além disso, para ser otimista sem ser estúpido, no mundo de hoje, é preciso ser otimista imaginando uma mudança no propósito do mundo.
            Sou otimista porque vivemos, mais uma vez, a maravilha de uma encruzilhada do futuro da humanidade. E isso ocorreu pela última vez com clareza, explicitamente, no final do século XV, com o Renascimento. Depois, vivemos outra encruzilhada, mas não tão explícita apesar de muito dinâmica, com a Revolução Industrial, quando tomamos esse desvio que está aí. E chegamos a esse desvio, que não considero patológico nem intrínseco ao ser humano. Há autores, como Koestler, que colocam como patológico e inevitável o desastre da humanidade. Ele acha que a estrutura do cérebro tem um lado do sentimento onde deverá estar a ética e este não se desenvolve com a mesma velocidade que o lado da racionalidade, que desenvolve as técnicas. Ele acha que o homem sempre será mais capaz de fazer bombas atômicas do que de destruí-las. Porque fazê-las é um gesto da racionalidade, enquanto destruí-las é um gesto do coração. Ou, para não usar esta metáfora e passar ao nível científico, do lado do sentimento do cérebro.
            Acho que podemos controlar isso até pela dinâmica. Se estamos nesta encruzilhada, é possível que haja uma alternativa para o futuro. E é isso que eu gostaria de especular. Quais são as chances do futuro? A meu ver, estes dois sustos e o terceiro dessa lógica assustadora (de imaginar que está no avanço técnico a morte do futuro) e não como Marx imaginava, que estava no avanço técnico o futuro ilimitado. Marx, como Bellamy, é de um tempo em que não havia consumo em quantidade. Então, para eles era fácil imaginar a sociedade da abundância, porque atenderíamos às demandas, rapidamente, das coisas básicas. Mas quando se salta do básico para o supérfluo é ilimitada a ganância. Ninguém é ganancioso para comer demais. Pode-se se guloso, mas não ganancioso, pois a pessoa se empacha, como se diz em Pernambuco. Mas ninguém se empacha dos bens supérfluos.
            Marx não percebeu essa possibilidade.
CONTINUA NA PRÓXIMA QUARTA...
Obs.: Os negritos itálicos são os destaques do texto original; os [  ], os negritos e os negritos vermelhos são destaques nossos.




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