quarta-feira, 1 de agosto de 2018

CIÊNCIAS 2 Ubiratan D’Ambrósio


Divulgando...
Bom dia meu povo!
Dia de Pensamento Inquieto! Continuamos com os textos anunciados na primeira postagem. Os mesmos serão divididos em várias postagens pra facilitar a leitura.
Obs.: Lembrando que temos uma novidade! Se você estiver sem tempo para ler o texto, a partir de agora disponibilizaremos um link para que você possa ouvir o texto sintetizado em MP3 (Haverá alguns sotaques visto que são sintetizadores estrangeiros)! O(s) Link(s) estará(ão) sempre entre o primeiro e o segundo parágrafo do texto postado.
Degustem!


CONTINUANDO...

            O processo de conquista é uma coisa impressionante. Até certo ponto, todas as colônias espanholas aconteceram para eles, foi surpresa. Simplesmente estavam interessados em ir daqui para lá e encontrar um comerciante da Índia, ou do Japão, e não pensavam em encontrar todo um império que eles puderam subjugar e, mais importante do que isso, fazer com que trabalhasse para eles. Eles encontraram terras das quais puderam se apropriar e distribuir ao seu bel-prazer. Ninguém podia na Europa, nenhum rei com todos os seus poderes, podia pegar um território do tamanho, por exemplo, da metade da França, chamar um compadre dele e dizer: toma, isso tudo aqui é seu. Você tem a capitania porque lhe dou. Não podiam fazer isso.
            E de repente surgem, nesse quadro dos séculos XVI, XVII, terras que podem ser expropriadas, tornando-se propriedade de uma pessoa. Não há nada mais violento nesse mundo do que isso. Quando pensamos no que hoje é um país, o Zaire, tudo aquilo era propriedade de uma pessoa, e essa pessoa era o rei da Bélgica. Nem era propriedade de um país, era propriedade de uma pessoa. Um indivíduo tinha um país. Um indivíduo tinha uma capitania, que hoje é um estado brasileiro. Tudo isso foi possível nessa mescla de descobrir o mundo, quer dizer, descobrir novos potenciais de produção, de propriedade, etc., que foram descobertos para serem explorados, para serem usados. E todo o conhecimento científico começa, então, a se construir. Claro, a realidade, aquilo que informa, agora aquilo que nos informa para produzir conhecimentos é um mundo muito maior. É um mundo observável muito maior, pode-se viajar, ver o que está acontecendo, fazer teorizações sobre coisas novas. E claro, tem-se na cabeça todo o exercício intelectual que permitiu construir uma coisa tão fabulosa quanto um sistema filosófico e religioso, como era o cristianismo. E a ciência moderna já nasce (a primeira palavra que Newton usa é Deus) como maneira de explicação que tem muito a ver com as maneiras de explicação daquela religião. Naturalmente, sendo uma religião que se faz, lá naquele ambiente, não pode admitir elementos de outras religiões com as quais competia. E daí as outras religiões,as outras maneiras de explicação. Mas quando falamos em religião, estamos falando em ciência também, porque é tudo parte do mesmo complexo.
            As outras maneiras de explicação que envolviam um sistema filosófico global de explicações, de manejo da natureza, de relacionamento com os sistemas naturais que fossem diferentes daqueles, teriam que ser combatidas. Portanto, aquele sistema filosófico que era um sistema religioso que se desenvolvia na Europa, e que era ligado ao sistema comercial que também se desenvolvia na Europa, foi o que permitiu, justificou, deu validade, legitimidade, moralidade à exploração dos países e dos povos conquistados.
            Tudo isso entrava em contradição com os outros sistemas que estavam florescendo nos outros lugares. E, portanto, surge a intransigência, que se manifesta como intransigência religiosa. Mas, a intransigência religiosa acaba sendo mais atrativa que uma inteligência, desde que ela fosse científica. Pode-se ser religioso, desde que não se pense em ciência muito fortemente. Isso, é desvincular nos povos conquistados, coisas que não podem ser desvinculadas. Tira-se, por exemplo, a possibilidade de um asteca continuar a fazer as suas contagens, as suas operações, seu comércio, o seu sistema de produção dentro da filosofia global asteca. Exige-se que ele conte como um europeu, e isso é formidável, porque o primeiro livro escrito nas Américas é um livro de aritmética, onde se descreve o sistema de contagem dos astecas. Para os espanhóis poderem comercializar bem com os astecas, eles tinham que aprender o sistema de contagem aritmética dos astecas. Cem anos depois esse livro desaparece e não existe mais. E o único livro que ensina aritmética é o livro da aritmética europeia.
            Como é que se pode dissociar, por exemplo, quando se vai para a Índia, o sistema de numeração, a matemática? Como é que se dissocia a matemática da Índia da religião? São coisas integradas, não é possível dissociá-las. No entanto, o que se vê é a imposição de uma mesma ciência a todos os povos. E hoje, encontramos a Índia, a China, o Asteca, a África, todos falando a mesma linguagem científica da Europa, dissociados das coisas que estão intimamente ligadas à linguagem científica.
            Isto é, não faz sentido se pegarmos formas de conhecimento, tais como ciência, religião, arte e dissociá-las dizendo: pode-se ser religioso desse jeito, pode-se ser artista desse jeito e você é cientista desse outro jeito. Não dá! Tudo é parte da mesma produção de conhecimento. E essa dissociação aconteceu na entrada dos séculos XVII e XVII, e aí passamos a ter uma coisa chamada ciência, estranha e absolutamente sem justificativa, dissociada das outras coisas, das outras manifestações do conhecimento.
            Bom, essa ciência encontra, internamente, justamente por causa dessa dissociação, bons cientistas. O que é preciso ter para ser um bom cientista? Ele tem que tirar da sua cabeça reflexões de natureza intuitiva, emocional. Flaubert tem uma frase muito bonita. No seu dicionário, na hora de falar sobre a matemática, ele diz que a matemática “seca o coração”.
            É no século passado onde encontramos um esforço enorme para dissociar a ciência das outras formas de conhecimento. Isto é, ao dissociar essas outras formas de conhecimento, elas se mantém, sobretudo, junto às tradições. São formas de conhecimento vivo que se mantém vivas nas tradições, porque como ciência ninguém pode mais falar sobre elas e passam a ser proibidas de entrar na categoria de ciência, sobretudo nos países chamados periféricos.
            E se mantém vivas internamente, porque existe toda uma periferia permitindo (a periferia no sentido que, hoje, chamamos o que é científico e o que não é científico) que Keppler, por exemplo, fosse um astrólogo muito importante (ganhava a sua vida como astrólogo, a mãe de Keppler era uma feiticeira que foi condenada à fogueira), e é esse Keppler que nos deu a Lei de Keppler. Newton passa trinta ou quarenta anos de sua vida como alquimista. Depois, movido por outros interesses, se torna ministro da Fazenda. O grande pensador Pascal foi levado também por interesses do tipo comercial. Pascal estava muito interessado em produzir uma máquina de calcular. Ele o consegue, e acho que é o primeiro caso da história de reserva de mercado. Consegue um édito do rei da França dizendo que todas as máquinas de calcular seriam produzidas e comercializadas por ele, Pascal. Quer dizer, a pureza desses sentimentos, que a gente chama científicos, está mesclada com toda uma série de interesses. Ora, nessa evolução, sobretudo nos séculos XVII e XIX, a ruptura se faz flagrante. A ciência, desprezando as outras áreas, combatendo, até um momento em que ela própria (e isto acontece com todos os sistemas filosóficos, culturais, de conhecimento) abre espaço para uma crítica sobre ela. E a própria ciência nos permite ver, através do ‘seu filhote’ que é a tecnologia, os absurdos criados por ela mesma. Ela nos dá os elementos para que percebamos coisas que não podem continuar, na medida em que afetam a vida humana no que há de mais fundamental: na sobrevivência e na transcendência.
            Como é possível, hoje, com métodos, com instrumentos tecnológicos que nos permitem ver – e ninguém pode dizer que não é verdade – crianças morrendo de fome, como está acontecendo na Somália. E ao mesmo tempo nos mostram campos de trigo maravilhosos. Assistindo ao programa que fala sobre produção agrícola, por exemplo, o Globo Rural, vemos aquela beleza de campos de trigo. Ao mudarmos o canal vemos o noticiário internacional e a Somália. A ciência nos mostra no mesmo instante, as contradições desse mundo moderno. Como é que é possível, essa ciência que prega amor, num certo canal, vemos o Bispo Edir pregando a solidariedade humana, vamos o Papa, em visita a outra região, beijando o solo, e no outro canal vemos a Iugoslávia. E escutamos que os somalis estão morrendo de fome porque são ignorantes, são incapazes de se alimentar. Porque muita gente diz isso: eles são tão ignorantes, tão analfabetos, tão primitivos que não são capazes de comer a comida que nós estamos dando para eles. Fala-se isso.
            E os iugoslavos? Quão primitivos são, comparados com os somalis? Onde tem aquelas grandes universidades, Universidade de Lubiana, Universidade de Zagreb, que talvez tenham até produzido algum Prêmio Nobel, e estão se matando, na mesma rua, na mesma cidade. Isso tudo podemos ver graças ao avanço da produção científica, que nos dá essa maravilhosa televisão, na qual vemos tudo instantaneamente. A própria ciência nos deu, através dessa tecnologia avançada, da high tech, a possibilidade de ver as contradições. Poderia repetir e repetir contradições, mas não vou repetir a conversa de buraco de ozônio, não vou falar da poluição que aconteceu com o navio grego.
            Ao ligar a televisão, a qualquer hora, todos podem ver que o mundo moderno não dá para continuar do jeito que está. Ora, aonde nós vamos buscar uma outra saída? Naquilo que é dominante do mundo moderno. Todo mundo diz: o mundo moderno é dominado pelo pensamento científico. O pensamento científico é o que se impôs ao mundo inteiro. Nenhuma língua se impôs ao mundo inteiro. Nenhuma religião. A única coisa que se impôs ao mundo inteiro foi a ciência. Tudo isso está acontecendo e o único elemento que encontramos de globalização efetiva é a ciência, dá para desconfiar, não é? Mesmo que não seja contra a ciência, mesmo que eu seja seu admirador, dá pra desconfiar que alguma coisa nessa “ciência” falhou na hora de conduzir o mundo ao que ele é hoje.
            Vão dizer: não foi a ciência que falhou! Claro que foi! Se matarmos todos os homens, a ciência morre também. Aí, vão dizer: a culpa é dos homens. Claro que a culpa é dos homens. Mas os homens se comportam dentro de um modelo de pensamento que vem da própria evolução do conhecimento. E é esse modelo que não vai nos levar à felicidade, e um mundo com menos brutalidade. Nos deixa inquietos, sem dúvida. O futuro nos deixa inquietos. Essa é a origem, é o preâmbulo para as reuniões tipo Veneza, Vancouver, Belém, Dagoms. E muita gente está se perguntando: e daí? Dê-nos uma solução. Não sei. Isso me inquieta. Aonde está a solução? Qual é a saída? Produzir, quem sabe, um acelerador mais possante? E porque ver partículas ainda menores do que elas são? Será que isso ajuda? Quem sabe agora o Galileu que está passando por aqui vai chegar lá, não sei aonde que ele vai chegar, acho que a Júpiter ou a algum outro lugar. Quem sabe quando ele chegar lá, vá encontrar um livro e neste livro tenha a solução. Também acho pouco provável. De onde vem essa solução? Solução vem de dentro, do coração. Isso porque tem uma conotação de que sentimento está mais perto do coração do que da cabeça. A cabeça é toda racional. Talvez assim devesse ser feito.
            Mais, seria reincorporar o emocional, a moral, a ética em todas as nossas atividades. O que que aconteceu com a ética? Aonde se leu um livro de ciência que começasse com alguma discussão ética? Agora sim, agora está na moda, e todos começam assim, senão não vendem. Mas no próprio desenvolvimento da ciência, na hora de se transmitir, na hora de se fazer um PHD em matemática ou em física, ou na hora de se ligar um acelerador, ou na hora de se manejar um microscópio eletrônico, o que de ético passa na cabeça do fulano que está trabalhando com isso? Dizer que não, que se ele começar a se preocupar com essas coisas não vai demonstrar seu teorema, muito bem, que é capaz do microscópio eletrônico fundir, porque ele está pensando em coisas que não têm nada a ver com aquela experiência, isso tudo é bobagem!
            A preocupação com a ética e a preocupação com esse tipo de reflexão talvez seja, nesse momento, o que de mais forte temos à nossa disposição. Como indivíduo preocupado com isso, como educador, não me sentiria confortável começar ou acabar qualquer tipo de aula, conferência ou de palestra sem um apelo para reflexões do indivíduo sobre aquilo que ele está fazendo. Sobre o que isso significa no contexto geral. Como isso se situa historicamente. Historicamente, quer dizer, com relação ao passado e ao futuro. Quais as consequências disso? Pense um pouco sobre isso! Reflita! Tenha este tipo de preocupação na sua cabeça. E então vá manejar os seus instrumentos, os seus microscópios, os seus aceleradores, tudo isso.
            Então, o problema é essencialmente de educação. É um problema de trazer a todas as atividades, sejam políticas, científicas, atividades de toda natureza, trazer sempre um pouco de invocação. Muita gente faz isso, mas é puramente simbólico. Vemos que quase todas as Câmaras têm um crucifixo, tem uma imagem do presidente, tem coisa desse tipo, que são puramente simbólicas. A coisa é interior. O indivíduo tem de refletir sobre aquilo que ele representa neste mundo. Como ele se situa no elo passado e futuro? E qual vai ser o resultado de suas reflexões, de sua ação, de sua produção nesse elo entre passado e futuro?
            Acredito que assim possamos, quem sabe, desenvolver alguma coisa nova. É muito simples. Quer dizer, não precisamos aumentar a produção de coisa alguma. Tudo o que produzimos dá e sobra para o mundo se empanturrar. Precisamos eliminar, talvez, algumas coisas. Eliminar a ganância, o ódio, a inveja. Às vezes, penso que deveria ser um pregador e ir pregando, fazendo alguma coisa. E de fato esse dom de ‘pregar’ é necessário na nossa linguagem, e nosso apelo aos que estão fazendo alguma coisa, cujo efeito daquilo que eles fazem se reflete no mundo inteiro.
            Vou repetir uma frase de Einstein e Russel, quando lançaram O Manifesto, em 1955, que no fundo, acabou sendo ponto de partida para quase todas as outras atividades. Tem uma frase em que eles dizem simplesmente: “Lembrem-se da sua humanidade, e esqueçam todo o resto”.

Obs.: Os negritos itálicos são os destaques do texto original; os [  ], os negritos e os negritos vermelhos são destaques nossos.

SUGESTÕES DE LEITURAS
A estrutura das revoluções científicas – Thomas S. Khun. Série “Debates”. Ed. Perspectivas, 1989. SP.
Ciência e desenvolvimento – Mario Bunge. Ed, Itaitera, EDUSP, 1980.
Ciência e valores humanos – Jacob Bronowski. Itatiaia, 1979.
Hermes: uma filosofia das ciências – Michael Serres. Edições Graal, 1990. RJ.
O ponto de mutação – Fritjof Capra. Cultrix, 1991, SP.
A nova aliança Ilya Prigogine, Isabelle Stengers. Ed. UnB, 1991.



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