quarta-feira, 16 de maio de 2018

Marx por Carlos Nelson Coutinho 2


Divulgando...
Boa tarde povo!
4ª dia de Pensamento Inquieto! Continuamos com os textos anunciados na primeira postagem. Os mesmos serão divididos em várias postagens pra facilitar a leitura.
Obs.: Lembrando que temos uma novidade! Se você estiver sem tempo para ler o texto, a partir de agora disponibilizaremos um link para que você possa ouvir o texto sintetizado em MP3 (Haverá alguns sotaques visto que são sintetizadores estrangeiros)! O(s) Link(s) estará(ão) sempre entre o primeiro e o segundo parágrafo do texto postado.
Degustem!




CONTINUANDO...

            E também, com Gramsci, se criou algo que já vinha de antes e que Kautsky já havia chamado de ‘estratégia da derrubada’ e ‘estratégia do assédio’; que dizer, a derrubada seria esse choque frontal, o assédio seria esse processo de guerra de posição. Portanto, antes de Gramsci, mas sobretudo com ele, criou-se um novo paradigma, um novo conceito marxista de revolução, que me parece não só o mais adequado ao mundo contemporâneo, o mais exequível, mas também aquele que nos interessa mais, porque é aquele em que mais facilmente podemos preservar relações participativas do tipo democrático.


            Quer dizer, as revoluções que se dão através da violência, embora em muitos casos sejam necessárias (não vou imaginar que fosse possível derrubar a ditadura de Somoza na Nicarágua através da guerra de posição, porque não havia posições a serem conquistadas, ele não era dono apenas do Estado, mas da economia do país; dificilmente ali poderia ter sido diferente), certamente implicam riscos de regressão que são muito maiores do que no caso da construção de uma sociedade através da luta pela hegemonia e pelo consenso. Muito bem, o socialismo hoje implica a necessidade de pensarmos uma estratégia, que eu chamaria de reformista-revolucionária, para a construção de uma nova ordem social.
            E, ao falar de reformismo revolucionário, inspirando-me numa velha ideia de André Gorz, depois usada por Lucien Goldmann, ao propor uma estratégia reformista revolucionária, estou propondo uma terceira via entre os dois modelos de revolução ou de transformação, mais precisamente, que dominaram aqueles dois troncos do movimento operário a que me referi antes. Quer dizer, por um lado acho que devemos abandonar a ruptura revolucionária, a ideia de que só há revolução, que só há transformação, quando se toma o palácio, no caso brasileiro o Palácio do Planalto, no caso de 1917, o Palácio do Inverno,e, a partir desse momento, se começa a introduzir transformações radicais na sociedade. Acho que essa concepção de revolução está superada, pelo menos nos países onde há um razoável grau de desenvolvimento da sociedade civil. Isso vale para a maioria dos países da América Latina de hoje. Por outro lado, essa proposta supera também o modelo de transformação social-democrata. Veja bem, não critico a social-democracia por ela ser reformista, critico-a por ser insuficientemente reformista.
            E acho que a ideia de reforma como momento de transformação social, ou melhor, até como momento de revolução, é uma ideia que está presente no próprio Marx. Quando se conquistou, na Inglaterra, pela primeira vez, a fixação legal da jornada de trabalho (se não me falha a memória em dez horas), Marx disse o seguinte: “essa foi a primeira vitória da economia política do trabalho sobre a economia política do capital”. Ora, se Marx reconhece que uma reforma desse tipo é uma vitória da economia política do trabalho, então Marx autorizou, claramente, do ponto de vista teórico, a luta por reformas.
            Imaginem quantas vitórias da economia política da classe trabalhadora foram conquistadas, por exemplo, no welfare state: direito de aposentadoria, direito de férias, enfim, inúmeros direitos que certamente ainda não dão ao trabalhador uma plena cidadania social, mas que assegura-lhe inúmeras vantagens, conquistadas ainda no interior do capitalismo. A social-democracia captou essa possibilidade de uma luta por reformas de conquistas efetivas, mas a meu ver, peca porque toda vez que a dinâmica das reformas entra em conflito com a lógica do capital, e isso se dá rapidamente, porque o Estado capitalista não é capaz de financiar plenamente os direitos sociais conquistados, há uma crise fiscal. Então toda vez que ocorre esse choque entre o aprofundamento da cidadania e o Estado capitalista, a lógica do capital, a social-democracia tem, em geral, recuado e passado a gerir a lógica do capital.
            Então, o reformismo deles é um reformismo que eu chamaria fraco, é um reformismo, no máximo, ‘melhorista’. Dizem: vamos melhorar o capitalismo, e, à medida que as reformas se chocam com o capitalismo, eles em vez de ficarem com as reformas, ficam com o capitalismo. A minha ideia é que a estratégia socialista revolucionária possível hoje, é aquela que, utilizando as reformas como instrumento fundamental da luta política, tenha clara consciência de que essas reformas devem ser aprofundadas no sentido da superação da lógica do capital, no sentido da transformação do investimento social e não em algo que vise essencialmente ao lucro privado, mas em algo que vise essencialmente ao bem-estar da sociedade. Reformas, portanto, que devem ser feitas tanto na ordem econômica, no sentido de controlar socialmente a produção econômica, mas também na ordem política, no sentido de transformar profundamente o Estado e fazer dele algo permanentemente submetido ao controle social.
            Acho que essa nova proposta socialista de construção de uma nova ordem social deve abandonar uma posição que marcou tanto a vertente bolchevique-comunista quanto a vertente social-democrata, que é um viés profundamente estatísta; uma identificação seguramente equivocada entre estatal e público. Tanto a social-democracia pensou as suas reformas como algo a ser realizado através da burocracia do Estado, como as sociedades do Leste europeu conceberam a socialização da propriedade como a estatização da propriedade e, na prática, o controle dessa propriedade estatal pela burocracia estatal. Não vou discutir aqui se isso chegou a constituir uma classe, mas que certamente explorava o conjunto da sociedade porque tinha privilégios, porque detinha o controle da propriedade estatal e, nessa medida, impediu que se realizasse uma efetiva socialização da economia.
            Devemos, hoje, conceber um socialismo que não confunda e que não identifique o público com o estatal. Acho que deverá haver, é claro, algumas formas de propriedade do tipo estatal: bancos, etc. Mas devemos ser criativos para imaginar formas de controle público da economia que não necessariamente sejam formas de propriedade estatal: cooperativas, pequenas empresas integrando-se em cooperativas maiores, enfim, mecanismos que assegurem a propriedade do público sobre o privado numa economia que não hesitaria em chamar de economia mista. Acho que há setores que continuarão como propriedade privada, haverá um razoável grau de mercado, submetido, certamente, a um planejamento global. Mas eliminar o mercado por decreto revelou-se inviável. Então, numa economia mista, onde haja um integração dinâmica entre planejamento e mercado, é possível fazer com que os interesses públicos sejam prioritários sobre os interesses privados e, portanto, subordinar a lógica do capital, onde ela ainda existir, a uma lógica nova, que vise ao bem-estar da sociedade.
            Na economia parece-me que são essas as reformas que devem ser feitas no sentido de transcender a ordem social capitalista. Na política, por outro lado, acho que devemos inventar mecanismos que cada vez mais coloquem a sociedade civil controlando o aparelho de Estado até o ponto de absorver os mecanismos burocráticos do Estado nos organismos hegemônicos e autogeridos da sociedade civil.
            E tendemos a esquecer que uma utopia fundamental de Marx (no sentido positivo da palavra utopia) é o fim do Estado. O ideia de Marx é que o socialismo era uma etapa transitória para a realização do comunismo, onde haveria o fim do Estado. E lembro-me que Stalin, com seu enorme cinismo, dizia assim: “dialeticamente, para que o Estado desapareça, tem de se fortalecer cada vez mais; quanto mais forte ele for, mais perto estará de desaparecer”. E, com isso, criou-se aquela monstruosidade que conhecemos. Então, esse viés estatista não é a posição de Marx. Nessa medida, deve-se recuperar a noção do fim do Estado, talvez com um pouco mais de realismo do que Marx, não com a ideia de que o Estado possa se extinguir inteiramente, mas certamente com a ideia de que ele pode ser bastante enfraquecido e controlado progressivamente pela sociedade civil.
            Alguém poderia dizer que estamos defendendo o neoliberalismo que também fala em enfraquecer o Estado. Não, porque o neoliberalismo pretende enfraquecer o Estado para pôr no seu lugar o mercado, e o mercado com todas as suas terríveis injustiças, um mercado que, no Brasil, exclui de si mesmo quase dois terços da população. Se o neo-liberalismo, nos países desenvolvidos, é a sociedade dos dois terços, quer dizer, dois terços vivem mais ou menos bem e um terço vive miseravelmente, no Brasil é a sociedade do um quarto: três vivem miseravelmente. Então, não se trata de enfraquecer o Estado para pôr em seu lugar o mercado, mas de enfraquecer o Estado para pôr em seu lugar a sociedade civil. Devemos conceber um caminho democrático e socialista onde a sociedade civil cresça cada vez mais e se torne cada vez mais o sujeito da construção da cidadania e das políticas sociais. Não se deve entregar sua realização à burocracia estatal, mas ter a sociedade civil como gestora e implementadora da política educacional, da política de saúde, etc.
            Nós, socialistas, nós, de esquerda, vivemos hoje num mundo onde não é difícil constatar a presença ainda hegemônica das correntes neoliberais. Vejam bem, uma presença hegemônica aparentemente tão forte que um filósofo dublê de funcionário do Departamento de Estado norte-americano, Francis Fukuyama, chegou a escrever um livro, inteligente, para defender a ideia de que chegamos ao fim da história. Quer dizer, a democracia liberal, entendida como liberalismo político e (de) mercado é o fim da história: quem ainda tem história é quem ainda não chegou lá. Por exemplo, nós ainda temos história, então vamos passar, até chegar lá, direitinho por aquele modelo europeu e tal...
            Lembro-me sempre que o Hitler dizia que o Terceiro Reich ia durar mi anos; durou doze. Então, tenho a impressão de que também esse reino milenar, ou eterno, do mercado liberal, não vai durar tanto tempo assim.
            Como vocês sabem, o conjunto dos países do Primeiro Mundo vive hoje uma profunda recessão econômica. Não é só o socialismo que está em crise, o capitalismo continua a manifestar traços da sua crise já secular. Como é possível resolver, através de políticas neoliberais a imensa disparidade entre o Norte e o Sul do mundo? Esse modelo neoliberal só faz acentuar as desigualdades sociais, e, vejam bem, um fenômeno como a Somália atual é resultado do capitalismo, não da falta de capitalismo, como alguns neoliberais têm tentado nos vender ‘o peixe’, Dizem que a África está assim porque não tem capitalismo, quando o capitalismo chegar lá, resolve. Qual o mal do Brasil é a falta de capitalismo, houve até quem propusesse um choque de capitalismo.
            Não, a miséria brasileira e a miséria africana são claramente resultado do capitalismo, que não é um fenômeno nacional, e sim um fenômeno internacional. Então, o capitalismo também está em crise e o neoliberalismo apresenta hoje em dia traços de uma profunda crise como modelo de legitimação. É impossível conviver com fenômenos como a Somália, é impossível conviver com a Baixada Fluminense, onde a situação ainda não é tão grave quanto a situação da Somália. O neoliberalismo começa, portanto, a apresentar sintomas de que sua hegemonia não será longa. Mesmo no Brasil, onde em alguns momentos a política do Collor chegou a demonstrar que duraria, acho que, também no Brasil, ele começa a revelar seus limites.
Às vezes, nos preocupamos um pouco com a bizarrice do presidente Itamar Franco. Mas, o fato real é que o Itamar tem posto o dedo em alguns problemas importantes, demonstrando claramente que esse negócio de que modernidade é ir para o Primeiro Mundo, não é nada; modernidade é resolver as condições de miséria do povo brasileiro, sem o que não tem modernidade nesse país. Modernidade é importar o BMW? Claro que não. Lembro-me, fui do PCB muitos anos, que todo documento do PCB sempre começava pela parte internacional e tinha uma frase inicial assim: “O socialismo avança no mundo.” Podia estar acontecendo coisas trágicas para o socialismo, como o conflito sino-soviético, a intervenção na Tcheco-Eslováquia, mas o socialismo estava sempre avançando.
            O reino do neoliberalismo começa a revelar cisões, fraturas, começa a demonstrar que como o Reich dos mil anos do Hitler não vai demorar tanto assim, e formas de inquietação começam a se manifestar na Europa e em outros países do mundo, indicando uma possibilidade de uma retomada da esquerda.
            O que será essa nova esquerda? Não sabemos ainda. Certamente ela não será uma esquerda apenas proletária. E continua achando que a classe fabril tem uma centralidade na luta pelas transformações sociais, socialista, mas certamente não é mais o único sujeito dessas transformações. Temos que conceber uma esquerda que se abra para demandas que provêm de inúmeros outros segmentos da sociedade e demandas que, implicando o aprofundamento da cidadania, certamente têm uma lógica própria que se chocará com a lógica do capital. Estou plenamente convencido de que a expansão da cidadania é incompatível com a permanência do capitalismo. Se fosse compatível, acho que deveríamos abandonar o socialismo.
            Se pudermos conseguir todos os direitos sociais e políticos que nos propomos hoje, e que a humanidade certamente vai propor daqui pra frente, (e os direitos não acabam hoje, outros direitos vão surgir), e ainda, se todo esse volume de direitos for compatível com o capitalismo, com a lógica do capital, então certamente o socialismo não tem futuro. Acho que não, pois o socialismo é justamente a possibilidade de realizar plenamente essa demandas sociais, e pelo menos durante um certo tempo na história dar também segmento às novas demandas emergentes que certamente se colocarão às gerações futuras. Também o socialismo não é eterno,e nós não sabemos o que vem depois, mas certamente ele é, e insisto nisso, hoje é preciso insistir enfaticamente, uma ordem social capaz de responder às contradições e demandas do mundo contemporâneo. Nesse sentido, acho que a necessidade do socialismo brota das próprias contradições do capitalismo. E isso nos dá razões de esperança e de um otimismo pelo menos moderado.
Obs.: Os negritos itálicos são os destaques do texto original; os negritos e os negritos vermelhos são destaques nossos.

SUGESTÕES DE LEITURAS
Marxismo, guerras e revoluções – Issac Deutscher. Ática, 1991. SP.
A vingança da História: o marxismo e as revoluções do leste – Alex Callinicos. Jorge Zahar Ed., 1992. RJ.
A crise da crise do marxismo: Introdução a um debate contemporâneo – Perry Anderson. Brasiliense, 1983. SP.
Depois da queda: o fracasso do comunismo e o futuro do socialismo – Robin Blackburn (org.). Paz e Terra, 1992. RJ.





Como bem resumiu Nelson Rodrigues: “Não caçamos pretos, no meio da rua, a pauladas, como nos Estados Unidos. Mas fazemos o que talvez seja pior. A vida do preto brasileiro é toda tecida de humilhações. Nós o tratamos com uma cordialidade que é o disfarce pusilânime de um desprezo que fermenta em nós, dia e noite.”

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