terça-feira, 29 de maio de 2018

Justiça 1 por Roberto Aguiar


Divulgando...
Boa tarde povo!
4ª dia de Pensamento Inquieto! Continuamos com os textos anunciados na primeira postagem. Os mesmos serão divididos em várias postagens pra facilitar a leitura.
Obs.: Lembrando que temos uma novidade! Se você estiver sem tempo para ler o texto, a partir de agora disponibilizaremos um link para que você possa ouvir o texto sintetizado em MP3 (Haverá alguns sotaques visto que são sintetizadores estrangeiros)! O(s) Link(s) estará(ão) sempre entre o primeiro e o segundo parágrafo do texto postado.
Degustem!

CONTINUANDO...

            Então, para que o corpo aguentasse essa realidade nova, era preciso abstrair o corpo, tornar o Ser Humano abstrato. Nesse momento, aparece a visão moderna do Ser Humano com a qual se trabalha hoje. Ele é um indivíduo, um trabalhador livre, portador de uma vontade, e portador de uma vontade livre, de uma liberdade. Mas de uma liberdade muita estranha, que se traduz por um dos mais imbecis conceitos de liberdade que já se viu. “A minha liberdade termina onde começa a liberdade do Outro.” Essa definição de liberdade é a negação da liberdade. Se a minha liberdade termina onde começa a outra liberdade, isto depende da força, do espaço do outro. Então tenho menos liberdade quanto maior a força do outro. É um conceito que justifica a força; é um conceito que nega a possibilidade da fraternidade, da solidariedade. Os homens são essencialmente concorrentes. A minha liberdade é um problema de jogo de espaço de, “livre concorrência”, o que nunca foi.
            Ora, o resultado disso é que a Justiça passa a ser conceituada para esse Homem abstrato e não para o Homem concreto que nós observamos.


            A justiça passa a ser tratada como uma questão de partes. Vocês já perceberam, vocês que são tão ricos em termos de existências, projetos, trajetórias, que quando entram num processo se tornam parte, isso é autor, réu, requerente, requerido, embargante, embargado. As suas vidas não interessam. Vocês são abstrações em luta numa sintaxe processual. Isso é a quintessência dessa visão abstrata, que aparece na Primeira Revolução Industrial.
            Isso leva a alguns indicadores de concretização. Em Direito isso é chamado a “inserção no padrão napoleônico”, porque o código de Napoleão de 1810 é que praticamente fez o modelo jurídico e o modelo de visão do ser humano que concretizou os ideais burgueses que haviam sido construídos nas Revoluções de 1688, 1776 e 1779. O nosso Código Civil de 1916 é cópia servil do Código de Napoleão, isto é, Clóvis Bevilacqua, com toda a sua criatividade não fez muita coisa a não ser a adaptação do Código Civil de Napoleão de 1810.
            Nesse momento o que se percebe é que o Homem se torna a-histórico, abstrato, se torna um conceito, e nós fomos todos cegados para a concretude. Nós trabalhamos bem o conceito, mas não trabalhamos bem com o próprio real, com o próprio mundo do dado que nos assalta.
            Voltando à primeira história, falamos muito dos pobres menores abandonados, mas lavamos as mãos quando eventualmente colocamos no colo uma criança. Operamos bem com o abstrato e pessimamente com o concreto. Porque é assim que é preciso! Por quê? Porque no fundo se trabalharmos com a afirmação da corporeidade, negamos a produção em linha, negamos a possibilidade de Revolução Industrial, da disciplina no trabalho. Então, é preciso que o Homem se torne olhos e ouvidos. E o interessante: só olhos e ouvidos, porque os outros sentidos, não é muito bom colocarmos. O tato é sensual, o gosto é gula, e cheirar pega mal. Por isso nós somos olhos e ouvidos. Quando nós nos pensamos, nos vemos, nos ouvimos. Porque nós somos educados para os olhos e os ouvidos. E é assim que se faz um produtor eficaz. Inodoro, incolor, insípido e eficaz. Assim é que se faz, lembrando um outro livro sobre o que se está tratando, “A vigésima quinta hora”, assim é que se faz o cidadão bom. Conformado, acrítico e a serviço dos poderes dominantes. Porque ele nega aquilo que lhe é essencial a corporeidade.
            Como é que isso explode na contemporaneidade? Isso explode na contemporaneidade com coisas terríveis. Como trabalhamos com abstrações e como a tecnologia traz uma série de formas de estimulação, que a escola de Frankfurt chama de indústria cultural, transformamos o mundo em imagens cênicas. Em conversa com uma jornalista perguntei: vocês já perceberam que as coisas no Brasil acontecem como se fosse capítulos de uma novela? Vocês, sabem me dizer a cronologia dos escândalos do governo Collor? O que está acontecendo com aqueles envolvidos? Passou, já terminou. Quer dizer, acabou a novela do Homem das Bicicletas, depois vem a novela O Contrato do Uruguai e assim por diante. Termina. As coisas são cênicas, os espetáculos se esgotam em si mesmos numa negação do cênico grego, do cênico artístico. É o cênico operatório. Por outro lado, as teorias da contemporaneidade das metrópoles nos trazem outra questão seríssima. Elas dão o mundo como fragmentado. O mundo é fragmentado. O mundo, as pessoas. A massa é informe, é um buraco negro que praticamente absorve as informações mas não reflete. A tendência do mundo é a entropia. Nesse momento, percebemos que estamos vivendo uma fragmentação em termos de conceito, estamos vivendo uma sociedade onde o cênico, o televisivo, nesse sentido estrito, aparece; uma sociedade, onde o capitalismo e o socialismo estão em crise, e uma sociedade que, com essas características, desensibiliza as pessoas para os problemas que tem na imediatidade. É uma sociedade que é presa fácil dos mitos.
            Quais são os mitos que nós podemos perceber na sociedade hoje? Um: o mito do mercado. Isto é, nós temos um novo Deus, lembrando Hugo Assmann, que tem um livro: Luta dos Deuses. Hoje temos um novo Deus, o Deus Mercado. Ele, na sua sapiência infinita, vai resolver todos os problemas da Humanidade. Segundo aspecto dessa sociedade: uma sociedade eminentemente tanática, no sentido freudiano do termo, onde os valores da morte são muito mais importantes que os valores da vida. Isto é o real.
            Enquanto falamos aqui, estão se empilhando crianças mortas a cada dois minutos lá no canto. A cada dois minutos morre uma criança carente neste país. E ao final de uma palestra de 60 minutos, 30 crianças estão mortas lá no cantinho, e nós aqui lembrando e conversando. Terceiro: esse sentido de morte é tão grande que nós incorporamos a morte em termos conceituais. Por exemplo, cai um muro em Berlim e nós dizemos que o socialismo morreu. Como se a queda de um muro tivesse resolvido os problemas de classe no país. Caiu o muro de Berlim e nesse momento um peru assado entrou no sertão do Cariri para todos aqueles que lá moram. Cai o muro de Berlim, e nesse momento todos aqueles que moram nas palafitas recebem empregos na General Motors. É o mito da morte: a morte do socialismo. Outros, como Fukuyama, diz que a História morreu. Chegou a liberalismo, que é a parusia social, é o final dos tempos. Todos um dia vão chegar a essa liberdade de mercado que é o final dos tempos. Então não tem mais História, numa interpretação, diga-se de passagem, numa leitura imbecil de Hegel. Perdoem-me alguns que acham que ele é sofisticado na análise de Hegel, eu acho que deveria ir para Hegel novamente, porque é uma leitura completamente deformada.
            Alguns teólogos americanos, de igrejas, proclamaram a morte de Deus, Deus também morreu, vamos fazer uma teologia sem Deus. Uma contradição!
            E finalmente, os pensadores franceses da contemporaneidade que recebeu o rótulo de pós-moderna dizem: as utopias morreram. Quer dizer, nos sacam até a possibilidade de sonhar.
            Ora, é nesse momento então, que olhando esse tema, precisamos pensar a Justiça como uma volta à concretude. A concretude do corpo, da participação, de perceber que o Homem está referenciado a uma totalidade, não só uma totalidade como uma certa leitura mecanicista, mas uma totalidade bem mais ampla. E segundo: que pensar Justiça, nesse eixo, significa pensar na alteridade concreta como fundamento da Justiça. Pensar que a Justiça só se concretiza na historicidade. Não uma história no sentido do progresso, aquela história sem volta, mas talvez retomando a pluralidade histórica. Perceber que a Justiça está em função da contradição. Isto é, a categoria contradição está ínsita na questão Justiça. Não é possível pensar Justiça numa sociedade que no fundo tem padrões supra-sociais que interferem numa sociedade harmônica. Não. A Justiça é a superação das contradições circunstanciais, pessoais, coletivas, que a sociedade apresenta e o cidadão, em termos de opções éticas, tem que resolver.
            E, finalmente, e perceber que os valores que embasam a Justiça são os valores sociais. Os valores são construções sociais históricas, no sentido de aperfeiçoamento das relações entre os Homens. Aliás, é interessante que certas palavras são hoje muito mal-faladas. Falar de amor, de fraternidade, de felicidade, pega mal. Não é racional. Nós sacamos o fundamental porque não é racional. Clivamos o mundo. O racional não vai tratar de felicidade, onde já se viu? Felicidade é um conceito. A felicidade do trabalhador é a tecnologia, mas se não trabalharmos com outros conceitos trabalharemos com números. O que é o trabalhador feliz, perante uma sociedade que se tecnologiza (para usar o neologismo)? Esse é um eixo que eu queria abordar.
            Um segundo eixo que eu queria colocar é o eixo da planetarização. Isto é, percebemos que o conceito de Justiça, antes, era um conceito individual. Se tomarmos os romanos, os gregos, ou se pegarmos até mesmo o Código de Hamurabi, que viveu na Mesopotâmia há um bom tempo, perceberemos que a Justiça é um problema interpartes. É uma justiça que chamamos de comutativa. Quer dizer, eu vendo e tenho que vender pelo justo preço, e o comprador tem que me pagar, mas pagar pelo preço que eu pedi. É o equilíbrio, entre partes. E esse sentido foi sendo levado por muito tempo na História. E o século XIX, pelas suas lutas, e pelo assumir da historicidade, da participação do Homem em grupos sociais, em classes sociais, pela criação, pela descoberta ou pela redescoberta da dialética, é que vai trazer uma outra dimensão da Justiça, que é a internacionalização da Justiça. A Justiça sai do individual, ou do império ou do nacional, para se tornar um problema internacional. Quando Marx diz: “proletariado do mundo, uni-vos”; ele está procurando uma Justiça que não se cinja a países, se cinja a um problema que passava internacionalmente pelo Planeta.
            Mas a questão internacional ainda é pouco. Isso porque, hoje, os problemas que a humanidade vive não são problemas que dependem apenas de governos internacionais. Os problemas são planetários! Relembrando os exemplos, o problema nuclear não é um problema internacional. É um problema planetário, é um problema da espécie, do planeta. Isto é, pela primeira vez o homem chegou a um momento em que, talvez na história biológica, é a primeira espécie que pode ser suicida. É se auto-destruir com seus próprios instrumentos. Não se conhece espécies suicidas. Mesmo alguns biólogos dizem que os Lemingues se suicidam nas tundras do Canadá, mas isso aí é para regular a população, porque senão as línquens não serão suficientes para alimentá-los. Nós, não. Nós estamos na primeira possibilidade.
            A própria tecnologia traz esses problemas de meio ambiente, e esses problemas não se cingem a países, mas ao planeta. E mais, essa questão de Justiça começa a invadir até outros aspectos. Se eu disser, que nós precisamos, eventualmente, pensar numa Justiça cósmica, vão dizer que isso é alucinação de uma pessoa que andou lendo demais. Mas, o próprio caminhar da humanidade indica isso, as descobertas sobre a estrutura molecular do Homem, o próprio sentido de que o homem participa do tecido do Universo, ele é parte disso! As contribuições da mecânica quântica, da astrofísica, para dizer algumas, levam a pensarmos que talvez o Homem tenha uma característica que precisamos destacar. O Homem é inesperado. O homem é um ser estranho. Comprimido entre dois mistérios do seu nascimento e morte e com grande parte da sua existência trabalhando no invisível. As contribuições de Freud, de Jung, mostram que existe uma camada de indizível, encoberta, que nós mesmos não explicamos. Então no homem há um indizível interno e um mistério na sua existência, e isso talvez venha a mexer com nova ordem de problemas.
            Por isso diria: há necessidade de nós refletirmos a Justiça numa amplitude bem maior. Não somente na sua incidência, como na necessária reconceituação da relação dos homens, entre si e com o seu meio.
            Um outro eixo, que acho importante levantar, é o da paixão perdida. Nos séculos XVII, XIX, a primeira Revolução Industrial matou a paixão. Matou-a operatoriamente, para efeitos de eficácia. E é a paixão que faz as grandes transformações da história. Nunca se viu alguém que não fosse apaixonado fazendo alguma transformação que fosse razoável no mundo. Se Mozart não fosse apaixonado pela música, se Einstain não fosse apaixonado pelo Universo, se Marx não fosse apaixonado pelo outro, pelos explorados, nada teria acontecido! Nem teríamos as obras de Mozart, nem teríamos a grande revolução científica, nem teríamos as transformações sociais.
            E é surpreendente que essa paixão, que faz as coisas andarem, praticamente foi dada como algo maléfico, perigoso. Então, amor é bom, paixão é destrutiva. O amor constrói, lembrando aí a época da ditadura; Dom e Ravel, grandes teóricos! A paixão destrói! O amor plenifica. A paixão fragmenta. Por isso dizemos não sou apaixonado pela minha mulher, tenho um grande amor por ela. Porque paixão é aquele negócio avassalador, que passa um trator em cima e esmigalha. Isso é que nos é passado!
            Em todas essas épocas até o século XIX, quando surge a produção em linha e Taylor, em todas essas épocas, a paixão era algo do ser humano. A partir daí, percebeu-se que, na produção em linha, o apaixonado não trabalha bem. Mas é óbvio. Vocês já pensaram um sujeito apaixonado por sua companheira, na cama com ela, e às seis horas da manhã toda o despertador pera ele entrar na fresa, ou no torno? Ele, certamente, chutará, com a maior legitimidade, o seu despertador. E criará uma lacuna na linha de produção. Então, é preciso que o homem mate a paixão, se reconceitue como um ser amoroso, e nunca apaixonado.
            E com isso o que acontece, no âmbito específico que nós estamos tratando aqui? Não há mais a paixão pela Justiça. A Justiça é um conceito, é um jogo, é uma relação, é uma geometria, mas a Justiça não é paixão! Nós perdemos a possibilidade do sentimento da Justiça, da paixão pela Justiça. E é uma paixão envolvente, porque é uma paixão teórico-prática. É uma paixão de reflexão e ação. De valores e ações.
            Então, quando se perde a paixão pela Justiça, nesse momento a sociedade se abre para essa dimensão completamente aética que nós vivemos. Nós vivemos numa sociedade, hoje, onde não há parâmetros para coisa alguma. Tudo é válido, desde que dê lucro.
CONTINUA NA PRÓXIMA QUARTA...
Obs.: Os negritos itálicos são os destaques do texto original; os [  ], os negritos e os negritos vermelhos são destaques nossos.


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