sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Uma reflexão sobre Educação Libertadora...

Divulgando...


CONTRA O QUE? EM NOME DO QUE?
            Às vezes é muito difícil falar sobre ideias que deram origem ao Método Paulo Freire, porque elas são muito simples e algumas pessoas precisam complicá-las.
            Na verdade Paulo Freire não tem sequer uma teoria pedagógica definitiva. Ele tem um afeto e a sua prática. Por isso fica difícil teorizar a seu respeito, sem viver a prática que é o sentido desse afeto. Por isso é fácil compreender o que ele tem falado e escrito, quando se parte da vivência da prática do compromisso que tem sido, mais do que sua teoria, a sua crença.
            Como discutir com os termos complicados da ciência um educador cuja ideia-chave é o amor? Procure, leitor, folhear de alma limpa os escritos dele. Aos olhos ferozes dos tecnocratas do poder e da educação, pode ser que tudo aquilo não passe de uma espécie de poesia pedagógica, tão edificante quanto inviável. E aos seus olhos?
            Coisas simples. Paulo Freire acredita que o dado fundamental das relações de todas as coisas no Mundo é o diálogo. O diálogo é o sentimento do amor tornado ação. As trocas entre o homem e a natureza são originalmente regidas pelo diálogo. Paulo Freire pernambucanamente fala mesmo de “diálogo do homem com a natureza”. Isto quer dizer que as coisas que existem no mundo, da terra ao trigo, são dadas ao homem. Elas existem para ele e se oferecem ao homem para serem dominadas por ele. Para serem amorosamente transformadas e significadas pelo homem e para ele. O homem responde à dádiva da natureza com o ato do trabalho. O trabalho do homem é a sua parte no diálogo que deveria ser o fundamento de todos os outros atos humanos. Com o trabalho livre e solidário sobre a natureza, o homem cria a sua cultura, transforma o mundo, faz história e dá sentido à vida.
            Em si mesmas, as relações entre os homens não são mais do que um outro momento de um mesmo diálogo. Do mesmo modo como o homem depende da natureza para sobreviver e a natureza depende do homem para ter sentido, os homens dependem uns dos outros para sobreviverem e darem sentido ao mundo e a si mesmos. Por isso mesmo, o diálogo não é só uma qualidade do modo humano de existir e agir. Ele é a condição deste modo e é o que torna humano o homem que o vive.
            O trabalho não é uma relação entre o homem e a natureza (apenas). O trabalho é uma relação entre os homens através da natureza. Por isso ele deveria ser o domínio mais fervorosamente concreto do diálogo entre os homens. Transformar o Mundo, tornando-o cada vez mais humano, é o sentido do trabalho. E como todo o trabalho do homem sobre o Mundo é coletivo, ele é também um modo de exaltação da solidariedade entre os homens.
            Em si mesma a cultura, que é o resíduo que o trabalho humano deixa sobre o Mundo, deveria ser todas as formas visíveis ou comunicáveis da significação do diálogo entre os homens e de todos os seus efeitos sobre o Mundo.
            No entanto, a história concreta do homem nega de muitos modos o diálogo entre os homens e entre ele e a natureza, ainda que ela no horizonte seja a trajetória da reconquista do diálogo.
            Na prática as relações sociais do trabalho, ao produzirem os bens de que o homem sobrevive, reproduziram condições concretas em que alguns poucos sobrevivem do trabalho dos outros. Sobrevivem de deter modos de poder que surgem onde o diálogo acaba e onde o trabalho, afinal, separa e opõe categorias de homens opostos, de grupos e classes sociais antagônicos.
            A desigualdade entre os homens e as estruturas sociais dela derivadas: de produção de bens materiais, de reprodução da ordem do trabalho e de todas as outras relações entre todos os tipos de pessoas, de criação dos símbolos e significados com que a consciência representa o mundo e os homens se comunicam, gera o reinado da opressão. Gera e preserva um tipo de Mundo ruim que, não obstante, é preciso transformar.
            Na sociedade desigual (“colonialista”, “capitalista”, “opressora”) também o saber aparece dividido entre os homens. Em primeiro lugar ele não existe plenamente como representação coletiva e solidária do mundo concreto onde se vive, tal como ele é. O Poder, que controla politicamente a ordem social que o sustenta, também determina ideologicamente o saber, o pensamento, os valores, os símbolos com que se apresenta como legítimo. Ele cria e recria os instrumentos e artifícios para que as pessoas oprimidas por ele pensem como ele, pensando que pensam por si próprias.
            A educação é um destes instrumentos. Ela é um destes artifícios. Ao falar primeiro de uma educação bancária e, mais tarde de uma invasão cultural dominante sobre a cultura e a consciência dos sujeitos oprimidos, Paulo Freire leva às últimas consequências a sua crítica política da educação que serve ao poder da sociedade desigual.
            Tomemos o exemplo da própria alfabetização. Nas experiências tradicionais dos programas oficiais, o ensino do ler-e-escrever mistura à palavra de ilusão uma realidade de fantasia. O mundo que ali se mostra oculta, justamente, o mundo que aqui se vive. Através de figuras, palavras, frases, indicações de leituras, a realidade social aparece ao educando como um fetiche: um mundo dado, irreal, pronto e estático, bonito, acabado e sem conflitos.
            Assim, o acesso real do aluno à uma compreensão de Mundo através da alfabetização, mistura opostos. Mistura uma eficácia real para a leitura da língua (de fato se aprende a ler-e-escrever – competência técnico-ética) com uma ineficácia para a leitura da vida (de fato se aprende a ler como verdadeiro aquilo que é irreal e como irreal aquilo que poderia ser tornado humanamente verdadeiro – competência ético-política).
            A educação imposta aparece como ofertada. O interesse político de tornar, também a educação, um instrumento de reprodução da desigualdade e de ocultação da realidade à consciência, aparece como uma questão de trabalho técnico sustentado por princípios de ciências neutras. Assim, a educação que serve, nas mãos do poder que oprime, para ocultar de todos a própria realidade da opressão e para fazer os homens cada vez mais diferentes pelo grau diferenciado de saber que distribui, oculta-se a si mesma.
            Parte do próprio trabalho da educação opressora é disfarçar-se de “neutra”, de “humana” ou de “democratizadora”. Ela pode melhorar pedagogicamente (técnico-ética), mas politicamente (ético-política) apenas aumenta o poder de dividir e iludir.
            No entanto, o poder da opressão política não é absoluto e a mesma história humana que o cria, mais adiante o destrói. No entanto, também, o poder do saber opressor e o poder dos sistemas e artifícios de sua difusão não são absolutos.
            A consciência do oprimido, que aprende com o trabalho pedagógico da educação do opressor a pensar como ele e a legitimar a ordem de Mundo que ele impõe, aprende a pensar por si própria (também). Aprende a desvelar a mentira do saber imposto, quando aprende a fazer a prática política cujo horizonte é a sua liberdade. É a construção progressiva, mas irreversível, de uma sociedade conquistada pelo povo, e, então, reconduzida do diálogo.
            A consciência do povo é invadida de muitos modos pelos símbolos do saber de quem o oprime através do trabalho. No entanto, invadida, ela não foi conquistada (plenamente). Por isso é legítimo pensar no poder de uma outra educação.
            É legítimo pensar em um trabalho pedagógico que se realiza todos os dias, em todas as situações em que as classes populares vivem o trabalho de sua própria organização política. Se um educador pretende ser consequente com a ideia de criar com o povo a condição da conquista de sua própria liberdade, nada é mais importante do que isto. Quando a consciência do oprimido acompanha a prática política popular, ela aprende a pensar a si própria e ao mundo, do ponto de vista desta prática. Por isso, a educação libertadora que é, ao mesmo tempo, o sonho e o método de Paulo Freire, é a reflexão desta prática popular, tornada possível também através da participação do educador: com o seu saber que subverte a intenção de domínio da educação opressora; com os seus recursos colocados a serviço da educação do oprimido.
            Nisso tudo a coisa aparentemente pequena, que é um trabalho de alfabetização de homens adultos do povo, tem o seu lugar. Porque não é mais do que um outro instrumento conquistado para a educação popular, para o lado de sua prática. Mas um instrumento que, entre o sonho e o método, atua no domínio do saber. De um saber popular a que serve e de onde o educador espera que venha um dia a conquista da volta definitiva do diálogo.
            Por isso também o próprio método de alfabetização que Paulo Freire pensou funciona de tal sorte que realiza, dentro do círculo de cultura, a prática do diálogo que o sonho do educador imagina um dia poder existir no círculo do mundo, entre todos os homens, aí sim, plenamente educadores-educandos de todas as coisas. Daí surge a própria ideia de conscientização, tão nuclear em Paulo Freire. Ela é um processo de transformação do modo de pensar. É o resultado nunca terminado do trabalho coletivo, através da prática política humanamente refletida, da produção pessoal de uma nova lógica e de uma nova compreensão de Mundo: crítica, criativa e comprometida. O homem que se conscientiza é aquele que aprende a pensar do ponto de vista da prática de classe que reflete, aos poucos, o trabalho de desvendamento simbólico da opressão e o trabalho político de luta pela sua superação. (pp. 102-109).

“Dois livros de Paulo Freire são fundamentais: A Educação como Prática da Liberdade e Pedagogia do Oprimido, ambos da editora Paz e Terra. Não importa que o próprio autor considere às vezes superadas algumas ideias do primeiro livro. Ali elas tomaram a forma de um livro pela primeira vez.” (p 111 – indicações para leitura).

Trechos retirados de: Brandão, Carlos Rodrigues. O que é o método Paulo Freire. São Paulo: Nova Cultural: Editora Brasiliense (Coleção Primeiros Passos).1985.
Obs.: Todos os destaques são nossos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário