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Fundamentalismo
Leonardo Boff, 1938, teólogo e escritor,autor de A oração de São Francisco: uma mensagem de paz para o mundo atual (Sextante)
Fundamentalismo
Leonardo Boff
Hoje se fala muito de
fundamentalismo. Fundamentalismo do mercado e do projeto neoliberal,
fundamentalismo cristão, fundamentalismo islâmico, principal responsável
pelos atentados de 11 de setembro, fundamentalismo das posturas políticas
e bélicas do Presidente Bush. Tentemos esclarecer o leitor o que seja
fundamentalismo e o risco que representa para a pacífica convivência
humana e para o futuro da humanidade.
O nicho do fundamentalismo
se encontra no protestantismo americano, surgido nos meados do século
19 e formalizado, posteriormente, numa pequena coleção de livros que
vinha sob o título Fundamentals: a testimony of the Truth (1909-1915).
Trata-se de uma tendência de fiéis, pregadores e teólogos que tomavam
as palavras da Bíblia ao pé da letra (o fundamento de tudo para a fé
protestante é a Bíblia). Se Deus consignou sua revelação no Livro
Sagrado, então tudo, cada palavra e cada sentença, devem ser
verdadeiras e imutáveis. Em nome do literalismo, esses fiéis
opunham-se às interpretações da assim chamada teologia liberal. Esta
usava e usa os métodos histórico-críticos e hermenêuticos para
interpretar textos escritos há 2-3 mil anos. Supõe-se que a história
e as palavras não ficaram congeladas. Precisam ser interpretadas para
resgatar-lhes o sentido original. Esse procedimento para os
fundamentalistas é ofensivo a Deus. Por razões semelhantes, eles se opõem
aos conhecimentos contemporâneos da história, das ciências, da
geografia e especialmente da biologia que possam questionar a verdade bíblica.
Para o fundamentalista, a
criação se realizou mesmo em sete dias. O cristianismo detém o monopólio
da verdade revelada. Jesus é o único caminho para a salvação. Fora
dele há somente perdição. Daí o caráter militante e missionário de
todo fundamentalista. Face aos demais caminhos espirituais ele é
intolerante, pois eles significam simplesmente errância. Na moral é
especialmente rigoroso, particularmente no que concerne à sexualidade e
à família. É contra os homossexuais, o movimento feminista e os
movimentos libertários em geral. Na economia é conservador e na política
sempre exalta a ordem e a segurança a qualquer custo.
O fundamentalismo
protestante ganhou relevância social a partir dos anos 50 com as
Eletronic Church. Pregadores nacionalmente famosos usam o rádio e a
televisão em cadeia para suas pregações e campanhas conservadoras.
Sob Ronald Reagan, significaram um fator político determinante.
Combatem abertamente o Conselho Mundial de Igrejas em Genebra (que reúne
mais de duas centenas de denominações cristãs) e todo tipo de
ecumenismo, tidos como coisa do diabo.
O catolicismo possui também
seu tipo de fundamentalismo. Ele vem sob o nome de Restauração e
Integrismo. Procura-se restaurar a antiga ordem, fundada no casamento
(incestuoso) do poder político com o poder clerical. Visa-se uma
integração de todos os elementos da sociedade e da história sob a
hegemonia do espiritual representado, interpretado e proposto pela
Igreja Católica (seu corpo hierárquico encabeçado pelo Papa). O
inimigo a combater é a modernidade, com suas liberdades e seu processo
de secularização. Expressões do Integrismo é modernamente o Cardeal
Josef Ratzinger, presidente da antiga Inquisição, que sustenta ainda a
tese de que a Igreja Católica é a única Igreja de Cristo, também a
única religião verdadeira, fora da qual não todos correm risco de
perdição. Ou o arcebispo Marcel Lefebvre, que fundou sua Igreja
paralela, considerada a fiel detentora da Tradição e da fé
verdadeiras. Características fundamentalistas se encontram também em
setores importantes do pentecostismo, também católico e nas igrejas
evangelicais populares.
Intolerância -Não é uma
doutrina. Mas uma forma de interpretar e viver a doutrina. É a atitude
daquele que confere caráter absoluto ao seu ponto de vista. Sendo
assim, imediatamente surge um problema de graves conseqüências: quem
se sente portador de uma verdade absoluta não pode tolerar outra
verdade e seu destino é a intolerância. E a intolerância gera o
desprezo do outro e o desprezo, a agressividade e a agressividade, a
guerra contra o erro a ser combatido e exterminado. Irrompem guerras
religiosas, violentíssimas, com incontáveis vítimas.
Não há nenhuma religião
mais guerreira que a tradição dos filhos de Abraão: judeus, cristãos
e muçulmanos. Cada qual vive da convicção tribalista de ser povo
escolhido e portador exclusivo da revelação do Deus único e
verdadeiro. Essa fé deve ser difundida em todo o mundo, em geral numa
articulação com o poder colonialista e imperial, como historicamente
ocorreu na América Latina, África e Ásia.
O fundamentalismo, como
atitude e tendência, se encontra em setores de todas as religiões e
caminhos espirituais. Hoje em dia, o fundamentalismo judeu se centra na
construção do Estado de Israel segundo o tamanho que lhe atribui à Bíblia
hebraica. O fundamentalismo islâmico quer fazer do Alcorão a única
forma de vida, de moral, de política e de organização do Estado entre
os islâmicos e em todo o mundo. Todos os que se opõem a essa visão de
mundo são obstáculos à instauração ''da cidade de Deus'' e conseqüentemente
são infiéis e merecem ser perseguidos e eventualmente eliminados.
Verdade -O fundamentalismo não possui apenas um rosto religioso. Todos os sistemas sejam culturais, científicos, políticos, econômicos e artísticos que se apresentam como portadores exclusivos de verdade e de solução única para os problemas devem ser considerados fundamentalistas. Vivemos atualmente sob o império feroz de vários fundamentalismos.
Verdade -O fundamentalismo não possui apenas um rosto religioso. Todos os sistemas sejam culturais, científicos, políticos, econômicos e artísticos que se apresentam como portadores exclusivos de verdade e de solução única para os problemas devem ser considerados fundamentalistas. Vivemos atualmente sob o império feroz de vários fundamentalismos.
O primeiro e mais visível
de todos é o fundamentalismo da ideologia política do neoliberalismo,
do modo de produção capitalista e de sua melhor expressão, o mercado
mundialmente integrado. Ele se apresenta como a solução única para
todos os países e para todos as carências da humanidade (todos
precisam de um necessário choque de capitalismo, diz-se
fundamentalisticamente). A lógica interna deste sistema, entretanto, é
ser acumulador de bens e serviços, por isso, criador de grandes
desigualdades (injustiças), explorador ou dispensador da força de
trabalho e predador da natureza. Ele é apenas competitivo e nada
cooperativo. Politicamente é democrático, economicamente é
ditatorial. Por isso a economia capitalista destrói continuamente a
democracia participativa. Onde se implanta, a cultura capitalista cria
uma cosmovisão materialista, individualista e sem qualquer freio ético.
Há teóricos que apresentam essa etapa como o fim da história. Para
ela não haveria alternativa. Urge inserir-se nela. Caso contrário
perde-se o ritmo da história. A condenação é a marginalidade ou a
exclusão. Eis o pensamento único e a ditadura da globalização
especialmente econômico-financeira (considero esta etapa como a idade
de ferro da globalização), hegemonizada pelas potências ocidentais.
Outro tipo de
fundamentalismo comparece no paradigma científico moderno. Ele está
assentado sobre a violência contra a natureza. Bem dizia Francis Bacon,
pai da moderna metodologia científica: há de se torturar a natureza
como o faz o inquisidor com seu inquirido, até que ela entregue todos
os seus segredos. Impõe-se esse método, fundado no corte e na
compartimentação da realidade una e diversa, como a única forma aceitável
de acesso ao real. Desmoralizam-se outras formas de conhecimento que vão
além ou ficam aquém dos caminhos da razão instrumental-analítica.
Ocorre que o projeto da tecnociência gestou o princípio da autodestruição
da vida. A máquina de morte já construída pode pôr fim à biosfera e
impossibilitar o projeto planetário humano. Na guerra bacteriológica,
basta meio quilo de toxina do botulismo para matar 1 bilhão de pessoas.
Bin Laden - Nos dias atuais
assistimos, estarrecidos, a dois tipos de fundamentalismo político. Um
representado pelo presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, e outro
por Osama Bin Laden. O presidente americano urde seus discursos no
melhor código fundamentalista: A luta é do bem (América) contra o mal
(terrorismo islâmico). Ou se é contra o terrorismo e pela América ou
se é a favor do terrorismo e contra a América. Não há matizes nem
alternativas. O ataque terrorista não foi contra os Estados Unidos mas
sim contra a humanidade, na suposição que eles são a própria
humanidade. O projeto inicial de guerra se chamava Justiça Infinita,
termo que usurpa a dimensão do Divino. Depois com menor arrogância,
mas na linguagem da utopia, chamou-se de Liberdade Duradoura. Termina
suas intervenções com ''God saves America. Há dezenas de anos que a
política exterior dos Estados Unidos maltrata as nações árabes
fazendo pacto com governantes despóticos (alguns emirados árabes nem
constituição possuem) em razão da garantia do suprimento de petróleo.
A partir de 1991, por ocasião da guerra contra o Iraque, já morreram
naquele pais cerca de 1 milhão de crianças por causa do embargo que
atinge os suprimentos medicinais e 5% da população foi morta em sistemáticos
bombardeios.
A atuação no conflito
entre Israel e os palestinos é a posições dos Estados Unidos
visivelmente unilateral, em favor dos ataques devastadores que a máquina
de guerra israelense move contra a população palestina que usa pedras
(intifada). A Arábia Saudita é ocupada por uma poderosa base militar
americana, território sagrado do islamismo onde se situam as duas
cidades santas Meca e Medina. Tal fato é para a fé islâmica tão
vergonhoso quanto um católico tolerar a Máfia no governo do Vaticano.
Coisas assim acumulam amargura, ressentimento, revolta e vontade de
vindita. É o fermento do terrorismo muçulmano cujos efeitos nefastos
todos assistimos e condenamos.
Não menos fundamentalista
é a retórica dos talibãs e de Osama Bin Laden. Este também coloca a
guerra entre o bem (islamismo) e o mal (a América). Em seu famoso
discurso após o atentado, divide o mundo entre dois campos: o campo dos
fiéis e o campo dos infiéis. ''O chefe dos infiéis internacionais, o
símbolo mundial moderno do paganismo, é a América e seus aliados.'' O
atentado terrorista significa que ''a América foi atacada por Deus em
um dos seus órgãos vitais - Graça e gratidão a Deus''. A cultura
ocidental como um todo é vista como materialista, atéia, secularista,
anti-ética e belicista. Daí a recusa em dialogar com ela e a vontade
de estrangulá-la em nome do próprio Alá.
Em nome de que Deus ambos falam? Não é seguramente em nome do Deus da vida, de Alá, o Grande e Misericordioso, nem em nome do Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, da ternura dos humildes e da opção pelos oprimidos. Falam em nome de ídolos que produzem mortes e vivem de sangue.
Em nome de que Deus ambos falam? Não é seguramente em nome do Deus da vida, de Alá, o Grande e Misericordioso, nem em nome do Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, da ternura dos humildes e da opção pelos oprimidos. Falam em nome de ídolos que produzem mortes e vivem de sangue.
É próprio do
fundamentalismo responder terror com terror, pois se trata de conferir
vitória à única verdade e ao bem e destruir a falsa ''verdade'' e o
mal. Foi o que ambos, Bush e Bin Laden fizeram. Enquanto predominarem
tais fundamentalismos seremos condenados à intolerância, à violência
e à guerra e, no termo, à ameaça de dizimação da biosfera.
Cegos - Não se há de
sorrir nem de chorar. Mas de procurar entender. Todos os
fundamentalismos, não obstante o variado matiz, possuem as mesmas
constantes. Trata-se sempre de um sistema fechado, feito de claro e de
escuro, inimigo de toda diferenciação e cego face à lógica do arco-íris,
em que a pluralidade convive com a unidade. Cada verdade se encontra
indissoluvelmente concatenada à outra. Questionada uma, desaba todo o
edifício. Daí a intolerância e a lógica linear. Daí sua força de
atração para espíritos sedentos de orientações claras e de
contornos precisos. Para o fundamentalista militante a morte é doce,
pois transporta o mártir diretamente ao seio materno de ''Deus'',
enquanto a vida é vivida como oportunidade de cumprir a missão divina
de converter ou exterminar os infiéis. O grupo é o lar da identidade,
o porto da plena segurança e a confirmação de estar do lado certo.
Como enfrentar os fundamentalistas? Estes são praticamente inacessíveis à argumentação racional. Nem por isso deve-se renunciar ao diálogo, à tolerância e o uso da razão para mostrar as contradições internas, subjacentes ao discurso e à prática fundamentalista. Por detrás do fundamentalismo político vigora uma experiência dolorosa de humilhação e de prolongado sofrimento. E procura-se infligir a mesma coisa ao outro, o que é manifestamente contraditório. Trazer o fundamentalista à realidade concreta, cheia de contradições, claro-escuros e nuances pode introduzir nele a dúvida e a insegurança. Estas possuem uma função terapêutica. Podem abrir uma brecha para a luz no muro das convicções cerradas e excludentes. Dialogar até a exaustão, negociar até o limite intransponível da razoabilidade, pode levar o fundamentalista a reconhecer o outro, seu direito de existir e a contribuição que poderá dar para uma convergência mínima na diversidade.
Como enfrentar os fundamentalistas? Estes são praticamente inacessíveis à argumentação racional. Nem por isso deve-se renunciar ao diálogo, à tolerância e o uso da razão para mostrar as contradições internas, subjacentes ao discurso e à prática fundamentalista. Por detrás do fundamentalismo político vigora uma experiência dolorosa de humilhação e de prolongado sofrimento. E procura-se infligir a mesma coisa ao outro, o que é manifestamente contraditório. Trazer o fundamentalista à realidade concreta, cheia de contradições, claro-escuros e nuances pode introduzir nele a dúvida e a insegurança. Estas possuem uma função terapêutica. Podem abrir uma brecha para a luz no muro das convicções cerradas e excludentes. Dialogar até a exaustão, negociar até o limite intransponível da razoabilidade, pode levar o fundamentalista a reconhecer o outro, seu direito de existir e a contribuição que poderá dar para uma convergência mínima na diversidade.
Estamos numa encruzilhada
da história humana. Ou criar-se-ão relações multipolares de poder,
eqüitativas e inclusivas com pesados investimentos na qualidade total
da vida para que todos possam comer, morar com mínima dignidade e
apropriar-se de cultura com a qual se possam comunicar com seus
semelhantes, preservando a integridade e beleza da natureza ou iremos ao
encontro do pior, quem sabe, ao mesmo destino dos dinossauros. Armas
para isso existem e sobra demência. Faz-se urgente mais sabedoria que
poder e mais espiritualidade que acúmulo de bens matérias. Então os
povos poderão se abraçar como irmãos na mesma Casa Comum, a Terra, e
irradiaremos como filhos da alegria e não como condenados ao vale de lágrimas.
Leonardo Boff, 1938, teólogo e escritor,autor de A oração de São Francisco: uma mensagem de paz para o mundo atual (Sextante)
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