O coronavírus dos ricos e o coronavírus dos pobres
Aqueles que
têm tudo de sobra atravessam a tempestade com menos sacrifícios do que os
pobres, para os quais a epidemia é apenas um elemento a mais da dor em que já
vivem.
Um barbeiro da favela de Mandela, no Rio de Janeiro,
trabalha com máscara de proteção durante pandemia de coronavírus.Antonio
Lacerda / EFE
Já se escreveu muito sobre como a tragédia do coronavírus nos iguala a todos porque quando
golpeia não conhece classes nem ideologias. Mata ricos e pobres. Isso é, no entanto, uma meia-verdade,
porque, como sempre na história, aqueles que têm tudo de sobra atravessam a
tempestade com menos sacrifícios do que os pobres, para os quais a epidemia é apenas um elemento a mais da dor em que já
vivem.
- Leia mais artigos de Juan Arias
- A ironia dos trilhões gastos em armas incapazes de matar um vírus e de nos fazer felizes
- Bolsonaro se isola do resto do mundo obcecado por seu messianismo perigoso
- Na mensagem de Páscoa, Bolsonaro mentiu e insultou a inteligência da nação
Pode parecer, mas não é uma blasfêmia dizer que os
pobres sofrem menos do que os ricos nestas tragédias porque estão acostumados a conviver com a dor, a frustração e a morte.
Talvez por isso, os que mais se opõem ao
confinamento que pode salvar muitas vidas são aqueles para quem não faltará
nada durante a quarentena, nem mesmo um bom hospital caso o bicho chegue a
pegá-los, como afirmou o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta.
Não vimos, de fato, multidões de pobres saírem às
ruas para protestar contra o isolamento, apesar de serem eles os mais
martirizados por essa medida, pois ela os impede até de sair para ganhar o pão para sua família. Os pobres não têm
cadernetas de poupança, e sim dívidas, e a epidemia os deixa mais desprotegidos
do que ninguém.
Estão sendo, paradoxalmente, os mais ricos que estão forçando as manifestações contra o
isolamento — que, segundo a ciência, é em todo o mundo o único antídoto até
hoje para salvar vidas. Sim, o vírus não é classista, mas as tremendas
desigualdades da nossa sociedade cruel continuam vivas e até se agigantam
durante a epidemia.
Para os mais ricos, os da Casa Grande, o que
interessa é que a máquina da produção seja posta em marcha o quanto antes para
que a Bolsa volte a subir.
Talvez seja por isso que personagens políticos como
o presidente Jair Bolsonaro se revelem desprovidos de sentimentos
humanos elementares de compaixão pelos que mais sofrem as consequências da
epidemia, e cheguem a negá-la.
Isso explica por que esses pequenos aprendizes de
tiranos não se preocupam com aqueles que mais vão morrer com o vírus. Sabemos que são os idosos e os que já sofrem de alguma
doença crônica. E essas vítimas são as que menos interessam a todos que veem o
mundo sob o prisma do mero lucro ou do mero interesse político. Para eles,
idosos e doentes são improdutivos em nossa sociedade do consumo e da vertigem
da produtividade a qualquer preço.
Os psicólogos e psiquiatras estão apontando as consequências negativas
que terá, para nosso cérebro, a crise mundial que afeta a humanidade inteira. E
é aterrador. É um rio de angústias profundas que nossa psique está acumulando,
e ainda não sabemos quais serão suas consequências finais.
Mas, dentro de tanta dor, angústia e morte, há um
aspecto esquecido que poderia nos ajudar a resgatar um sentimento perdido em
nossa sociedade, infectada pelo ódio político e social. Refiro-me a um certo
despertar do mundo das emoções, as mais positivas, as que nos curam das
psicoses e pareciam adormecidas em uma sociedade contagiada por ódios e
discriminações.
É como se o mundo do dinheiro frio e até o do tédio
daqueles que têm a mesa farta tivesse se apoderado de um mundo que já é incapaz
de emoções humanas profundas.
No entanto, a emoção nos redime de nossos pessimismos
estéreis, nos aproxima, nos faz descobrir algo que acreditávamos ter perdido
para sempre imersos, como estamos, na sociedade do egoísmo e da inveja. As
emoções são o oxigênio da nossa vida interior.
A epidemia, com suas dores, está nos devolvendo,
por exemplo, o gosto pela emoção gerada pela solidariedade e pela empatia com os demais, que nos parecem
mais próximos e iguais do que nunca.
É verdade que as sequelas psiquiátricas provocadas
pelo desespero da separação física podem aumentar durante a crise, como se vê
pelo aumento da violência doméstica em algumas famílias. Mas também é possível
que o confinamento forçado sirva para que muitos casais e
famílias valorizem e reconquistem a intimidade perdida e a alegria de estar
juntos.
São essas emoções que o isolamento desperta
repentinamente em nós, fazendo com que nos sintamos mais amigos e receptivos à
dor e à alegria alheias.
Cenas como a de idosos até de cem anos que saem dos
hospitais curados do vírus, sob aplausos de médicos e enfermeiros, eram
inéditas até ontem.
Não podemos esquecer, nem mesmo nestes momentos
trágicos, que a perda das emoções cria mundos paralelos de ódio e incompreensão
da dor e da pobreza alheias.
As emoções, em vez disso, afastam os demônios da
vingança. A emoção positiva está mais disposta ao perdão do que ao castigo e
nos prepara melhor para compreender a dor e a solidão dos outros.
Quem é incapaz de abrigar emoções diferentes das
criadas pela violência e pela morte nunca entenderá o que a ternura e o abraço
significam.
O que os nazistas,
que arrastavam mães com seus filhos para os crematórios nos campos de concentração,
sabiam sobre emoções como a compaixão pelos outros?
Os incapazes de emoções são os mais próximos dos
psicopatas que matam com a maior frieza do mundo. Onde estava a emoção nos
interrogatórios policiais sob tortura ou nos pelotões de fuzilamento das
ditaduras?
Se o coronavírus
nos servir para despertar os melhores sentimentos de emoção diante da
felicidade alheia, sentimentos que a luta política envenenada aniquilou, a pandemia
não terá sido inútil.
Nada seria mais positivo para nosso mundo
amargurado e cada vez mais injusto e com maior capacidade de segregação que
nascesse um rio de emoções reprimidas capaz de nos redimir de tantos ódios
acumulados.
Só aqueles que têm a alma seca de emoções não
conseguem entender certas correntes de emoções positivas que só apreciamos
quando as perdemos.
É por isso que todos os ditadores ou aspirantes são
sempre os mais alérgicos às emoções que salvam e unem a humanidade na busca de
uma felicidade que não precisaria matar nem humilhar para se sentir em paz com
os outros.
Devido às circunstâncias excepcionais, o EL PAÍS
está oferecendo todos os seus conteúdos digitais gratuitamente. As informações
relativas ao coronavírus continuarão abertas enquanto persistir a gravidade da
crise.
Dezenas de jornalistas trabalham sem descanso para
levar até você a cobertura mais rigorosa da pandemia e cumprir sua missão de
serviço público. Se quiser apoiar nosso jornalismo, pode fazê-lo aqui por 1
euro no primeiro mês (10 euros a partir de junho). Acesse os fatos, assine o
EL PAÍS.
Arquivado
Em:
- Brasil
- Pandemia
- Coronavirus
- Coronavirus Covid-19
- Doenças respiratórias
- Doenças infecciosas
- Isolamento social
- Aislamiento población
- Quarentena
- Desigualdade social
- Desigualdade econômica
- Pobreza
- Sociedade
- Jair Bolsonaro
Nenhum comentário:
Postar um comentário