Divulgando...
CONTRA O QUE? EM NOME DO QUE?
Às vezes é
muito difícil falar sobre ideias que deram origem ao “Método” Paulo Freire, porque elas são muito simples e
algumas pessoas precisam complicá-las.
Na verdade
Paulo Freire não tem sequer uma teoria
pedagógica definitiva. Ele tem um afeto
e a sua prática. Por isso fica
difícil teorizar a seu respeito, sem viver a prática que é o sentido desse
afeto. Por isso é fácil compreender o que ele tem falado e escrito, quando
se parte da vivência da prática do compromisso que tem sido, mais do
que sua teoria, a sua crença.
Como
discutir com os termos complicados da ciência um educador cuja ideia-chave é o amor? Procure, leitor, folhear de alma limpa os
escritos dele. Aos olhos ferozes dos tecnocratas do poder e da educação, pode
ser que tudo aquilo não passe de uma espécie de poesia pedagógica, tão
edificante quanto inviável. E aos seus olhos?
Coisas
simples. Paulo Freire acredita que o
dado fundamental das relações de todas as coisas no Mundo é o diálogo. O
diálogo é o sentimento do amor tornado ação. As trocas entre o homem e a
natureza são originalmente regidas pelo diálogo. Paulo Freire pernambucanamente
fala mesmo de “diálogo do homem com a natureza”. Isto quer dizer que as
coisas que existem no mundo, da terra ao trigo, são dadas ao homem. Elas
existem para ele e se oferecem ao homem para serem “dominadas” por ele. Para serem amorosamente transformadas e
significadas pelo homem e para ele. O homem responde à dádiva da
natureza com o ato do trabalho. O trabalho do homem é a sua parte no diálogo
que
deveria ser o fundamento de todos os outros atos humanos.
Com o trabalho livre e solidário sobre a natureza, o homem cria
a sua cultura, transforma o mundo, faz história e dá sentido à vida.
Em si
mesmas, as relações entre os homens não são mais do que um outro momento de um
mesmo diálogo. Do mesmo modo como o homem depende da natureza para
sobreviver e a natureza depende do homem para ter sentido, os homens dependem uns dos outros
para sobreviverem e darem sentido ao mundo e a si mesmos. Por isso mesmo,
o
diálogo não é só uma qualidade do modo humano de existir e agir. Ele é a
condição deste modo e é o que torna humano
o homem que o vive.
O trabalho
não é uma relação entre o homem e a natureza (apenas).
O trabalho é uma relação entre os homens
através da natureza. Por isso ele deveria ser o domínio mais fervorosamente
concreto do diálogo entre os homens. Transformar o Mundo, tornando-o cada
vez mais humano, é o sentido do trabalho.
E como todo o trabalho do homem sobre o Mundo é coletivo, ele é também um modo de exaltação da solidariedade entre os homens.
Em si mesma a
cultura, que é o resíduo que o trabalho humano deixa sobre o Mundo, deveria ser
todas as formas visíveis ou comunicáveis da significação do diálogo entre os
homens e de todos os seus efeitos sobre o Mundo.
No entanto, a
história concreta do homem nega de muitos modos o diálogo entre os homens e
entre ele e a natureza, ainda que ela no horizonte seja a trajetória da
reconquista do diálogo.
Na
prática as relações sociais do trabalho, ao produzirem os bens de que o homem
sobrevive, reproduziram condições concretas em que alguns poucos sobrevivem do trabalho dos outros. Sobrevivem
de deter modos de poder que surgem onde o diálogo acaba e onde o trabalho,
afinal, separa e opõe categorias de homens opostos, de grupos e classes sociais
antagônicos.
A desigualdade entre os homens e as
estruturas sociais dela derivadas: de produção de bens materiais, de reprodução
da ordem do trabalho e de todas as outras relações entre todos os tipos de
pessoas, de criação dos símbolos e significados com que a consciência
representa o mundo e os homens se comunicam, gera o reinado da opressão. Gera e
preserva um tipo de Mundo ruim que, não obstante, é preciso transformar.
Na sociedade desigual (“colonialista”, “capitalista”,
“opressora”) também o saber aparece dividido entre os homens. Em primeiro
lugar ele não existe plenamente como representação coletiva e solidária do
mundo concreto onde se vive, tal como ele é. O Poder, que controla politicamente a ordem social que o sustenta,
também determina ideologicamente o saber, o pensamento, os valores, os símbolos
com que se apresenta como legítimo. Ele cria e recria os instrumentos e
artifícios para que as pessoas oprimidas por ele pensem como ele, pensando que
pensam por si próprias.
A educação é um destes instrumentos. Ela é um destes
artifícios. Ao falar
primeiro de uma educação bancária e, mais tarde de uma invasão cultural dominante sobre a cultura e a consciência
dos sujeitos oprimidos, Paulo Freire
leva às últimas consequências a sua crítica política da educação que serve ao
poder da sociedade desigual.
Tomemos o
exemplo da própria alfabetização. Nas experiências tradicionais dos programas
oficiais, o ensino do ler-e-escrever mistura à palavra de ilusão uma realidade de
fantasia. O mundo que ali se
mostra oculta, justamente, o mundo que aqui se vive. Através de figuras,
palavras, frases, indicações de leituras, a realidade social aparece ao
educando como um fetiche: um mundo dado, irreal, pronto e estático, bonito,
acabado e sem conflitos.
Assim, o
acesso real do aluno à uma compreensão de Mundo através da alfabetização,
mistura opostos. Mistura uma eficácia real para a leitura da língua (de
fato se aprende a ler-e-escrever – competência
técnico-ética) com uma ineficácia para a leitura da vida (de fato
se aprende a ler como verdadeiro aquilo que é irreal e como irreal aquilo que
poderia ser tornado humanamente verdadeiro – competência
ético-política).
A
educação imposta aparece como ofertada. O interesse político de tornar,
também a educação, um instrumento de reprodução da desigualdade e de ocultação
da realidade à consciência, aparece como
uma questão de trabalho técnico sustentado por princípios de ciências neutras.
Assim, a educação que serve, nas mãos do poder que oprime, para ocultar de
todos a própria realidade da opressão e para fazer os homens cada vez mais
diferentes pelo grau diferenciado de saber que distribui, oculta-se a si mesma.
Parte do próprio trabalho da educação
opressora é disfarçar-se de “neutra”, de “humana” ou de “democratizadora”. Ela pode melhorar pedagogicamente (técnico-ética), mas politicamente (ético-política) apenas aumenta o poder de dividir e
iludir.
No entanto,
o poder da opressão política não é absoluto e a mesma história humana que o
cria, mais adiante o destrói. No entanto, também, o poder do saber opressor e o
poder dos sistemas e artifícios de sua difusão não são absolutos.
A
consciência do oprimido, que aprende com o trabalho pedagógico da educação do
opressor a pensar como ele e a legitimar a ordem de Mundo que ele impõe,
aprende a pensar por si própria (também).
Aprende a desvelar a mentira do saber imposto, quando aprende a fazer a prática
política cujo horizonte é a sua liberdade.
É a construção progressiva, mas irreversível, de uma sociedade conquistada pelo
povo, e, então, reconduzida do diálogo.
A
consciência do povo é invadida de muitos modos pelos símbolos do saber de quem
o oprime através do trabalho. No entanto, invadida, ela não foi conquistada
(plenamente). Por isso é legítimo pensar no
poder de uma outra educação.
É legítimo pensar em um trabalho pedagógico que se
realiza todos os dias, em todas as situações em que as classes populares vivem
o trabalho de sua própria organização política. Se um educador pretende ser
consequente com a ideia de criar com o povo a condição da conquista de sua
própria liberdade, nada é mais importante do que isto. Quando a consciência do
oprimido acompanha a prática política popular, ela aprende a pensar a si
própria e ao mundo, do ponto de vista desta prática. Por isso, a educação
libertadora que é, ao mesmo tempo, o sonho e o método de Paulo Freire, é a
reflexão desta prática popular, tornada possível também através da participação
do educador: com o seu saber que subverte a intenção de domínio da educação
opressora; com os seus recursos colocados a serviço da educação do oprimido.
Nisso tudo a
coisa aparentemente pequena, que é um trabalho de alfabetização de homens
adultos do povo, tem o seu lugar. Porque não é mais do que um outro instrumento
conquistado para a educação popular, para o lado de sua prática. Mas
um instrumento que, entre o sonho e o método, atua no domínio do saber. De um
saber popular a que serve e de onde o educador espera que venha um dia a
conquista da volta definitiva do diálogo.
Por isso
também o próprio método de alfabetização que Paulo Freire pensou funciona de
tal sorte que realiza, dentro do círculo de cultura, a prática do
diálogo que o sonho do educador imagina um dia poder existir no círculo
do mundo, entre todos os homens, aí sim, plenamente educadores-educandos
de todas as coisas. Daí surge a própria ideia de conscientização, tão nuclear em Paulo Freire. Ela é um processo de
transformação do modo de pensar. É o resultado nunca terminado do trabalho
coletivo, através da prática política humanamente refletida, da produção
pessoal de uma nova lógica e de uma nova compreensão de Mundo: crítica,
criativa e comprometida. O homem que se conscientiza é aquele que aprende a
pensar do ponto de vista da prática de classe que reflete, aos poucos, o
trabalho de desvendamento simbólico da opressão e o trabalho político de luta
pela sua superação. (pp. 102-109).
“Dois livros de Paulo Freire são fundamentais: A
Educação como Prática da Liberdade e Pedagogia do Oprimido, ambos da editora Paz e Terra. Não
importa que o próprio autor considere às vezes superadas algumas ideias do
primeiro livro. Ali elas tomaram a forma de um livro pela primeira vez.” (p 111
– indicações para leitura).
Trechos retirados de: Brandão, Carlos Rodrigues. O que é o
método Paulo Freire. São Paulo: Nova Cultural: Editora Brasiliense (Coleção Primeiros
Passos).1985.
Obs.: Todos
os destaques são nossos.
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