COMO
CONVERSAR COM UM FASCISTA?
SOBRE UM
DESAFIO TEÓRICO-PRÁTICO
(Márcia Tiburi)
O genocídio indígena, o massacre racista e classista contra
jovens negros e pobres nas periferias das grandes cidades, a homofobia, o
feminicídio, a manipulação das crianças, em poucas palavras, o ódio ao
outro, se estabelece em nossa sociedade no âmbito do extermínio da própria
política. Sabemos que é preciso exterminar a política para que o capitalismo
selvagem (tendencialmente, sempre selvagem) se mantenha. É preciso exterminar o
desejo de democracia pelo autoritarismo efetivado na prática diária. Para exterminar
a política é preciso que o povo a odeie e é isso o que o autoritarismo é e faz.
O autoritarismo é um modo de exercer o poder, mas é também um
ideário, uma espécie de regime de conhecimento. Como visão de mundo, ele é
fechado ao outro. Ele opera pelo discurso e pela prática sempre bem engrenadas
que se organizam ao modo de uma grande falácia, ao modo de um imperativo de
alto impacto performativo: o outro não existe e, se existe, deve ser eliminado.
Ora, dizemos “regime de conhecimento” pensando na operação mental da negação do
outro, mas o conhecimento como gesto na direção do outro é justamente o que é
destruído pelo autoritarismo que se basta como máscara sem rosto do
conhecimento transformado em ideologia, ou seja, em ofuscamento da verdade social.
Tudo o que não presta
Nada do que possamos chamar de conhecimento pode ser concebido
fora de seu registro ético-político. Se o registro do conhecimento
funciona pela negação do outro, o conhecimento nega a si mesmo. Sem o outro, o
conhecimento morre. O enrijecimento é uma prova da morte do conhecimento que se
torna cegueira ideológica. A ideologia é a redução do conhecimento à fachada,
como que sua máscara mortuária. O conhecimento, que deveria ser um processo de
encontro e disposição para a alteridade que o representa, sucumbe à sua própria
negação. Daí a impressão que temos de que uma personalidade autoritária é,
também, burra, pois ela não consegue entender o outro e nada que esteja em seu
circuito.
A propaganda é o método que sustenta a negação do outro. A
propaganda fascista, a propaganda do ódio, que prega a intolerância, que afirma
coisas tão estarrecedoras, como fez o famoso deputado Heinze ao dizer que
“quilombolas, índios, gays, lésbicas”, são “tudo o que não presta”, é a
destruição do conhecimento, como relação com o outro, que está na base do
desejo de democracia. Autoafirmação de ignorância, assinatura de estupidez. Mas
é, ao mesmo tempo, a destruição da política por um discurso antipolítico de um
agente que deveria ser político, mas que está, contudo, voltado para o instinto
de morte antipolítico.
Em casos como o desse discurso podemos falar em uma prática
discursiva “tanática”, exemplo perfeito da “tanatopolítica” contemporânea.
Típico discurso fascista. Mas a quem esse discurso convence? Eis uma questão
que precisamos nos colocar, até para poder combater o mesmo discurso ou para
criar alternativas para a sobrevivência de uma política democrática, para uma
política melhor, para um poder da diferença, um poder compreensivo que acolha a
tradição dos oprimidos.
Quem fala o que fala, sem nenhuma responsabilidade, por um lado
deve ser legalmente questionado, por outro, é preciso colocar em jogo a questão
das condições de possibilidade que, na cultura, fazem surgir falas como a do
deputado citado. Como alguém pode se autorizar ao discurso fascista que é
fomentado por sua propaganda? De outro, quem é suscetível à esta propaganda? Se
a propaganda fascista que é um tipo de discurso – e uma verdadeira metodologia
de alienação social – continuar vencendo, não teremos futuro. Em que direção
devemos agir diante desse estado de coisas?
Experimentum crucis
É neste contexto que podemos nos colocar a questão da qual
proponho que façamos um “experimentum crucis” teórico-prático: como conversar
com um fascista? Digo isso pensando que podemos avançar para além do discurso
da denúncia e da queixa. Quem se sente atacado nem sempre deve contentar-se com
a posição de vítima. Colocar-se na posição de vítima é um perigo e é muito
diferente de ser sujeito de direitos. É uma péssima estratégia em tempos em que
o poder está em mãos perversas que adoram imolar vítimas no altar do Estado e
do Capital.
A vítima, dizia um sábio alemão que lutou contra o fascismo,
sempre desperta o desejo de proscrever. Empoderamento é a saída. Contra a
posição da vítima, podemos pensar na posição do guerreiro sutil, aquele que
desafia o poder desde a sua interioridade, desde seu núcleo duro, para
desmontá-lo estrategicamente. Neste ponto, em bases sutilíssimas, podemos falar
de diálogo e a questão “como conversar com um fascista?” se torna um emblema do
desafio democrático.
Quem luta por direitos sabe que a conversar é impossível. Mas da
possibilidade de perfurar a blindagem fascista depende o recuo do fascismo,
infelizmente, a cada dia renovado pelo fomento da propaganda fascista dos
políticos antipolíticos e dos meios de comunicação de massa. O diálogo é, neste
caso, a “metodologia democrática” básica que poderia operar em situações
privadas ou públicas. O diálogo parece impotente diante do ódio. Ele parece
delicado demais. Mas o diálogo em si mesmo é um desafio. Um desafio
micropolítico, cuja colocação em cena pode nos ajudar a pensar no que fazer, no
como agir em escala macropolítica.
Estamos no terreno de uma estratégia
teórico-prática. Esse desafio tem três tempos:
1- O tempo do
outro, tempo apavorante enquanto o outro é sempre o desconhecido, aquele que
ameaça em algum sentido a “minha” ordem;
2- O tempo da
abertura de si que implica perceber-se como um outro, o que só se dá ao nível do
imaginário e do discernimento, pois jamais teremos acesso ao sentir e pensar do
outro, assim como ele não terá do nosso, senão pela exposição cuidadosa do que
sentimentos e pensamos;
3- O tempo
interminável, a saber, o da permanência na experiência do diálogo, ou seja, a
manutenção qualificada da metodologia. Em outras palavras, permanecer no lugar
do diálogo como insistência no encontro. Não ceder ao ódio, permanecer tentando
entender e, ao mesmo tempo, oferecer certo desentendimento como oportunidade ao
outro de entender, ele mesmo, a diferença para a qual está fechado. Nesse
sentido, o diálogo é resistência.
O diálogo não é a conversa entre iguais, não é apenas uma fala
complementar, mas a conversa real e concreta entre diferenças que evoluem na
busca do conhecimento e da ação que dele deriva.
Para que o diálogo ocorra é preciso haver isso que chamamos de
abertura ao outro. A abertura existe na mentalidade democrática, ela está
aberta ao outro em função de experiências cognitivas e culturais. A abertura
não existe no caso de uma personalidade autoritária, fechada ao outro também
por motivos cognitivos e culturais, motivos que incidem na formação da
experiência pessoal e coletiva.
A conversa com a alteridade que vai além dos argumentos, tem um
ponto decisivo no âmbito afetivo. Não do sentimento apenas, mas do modo como
nos “afetamos”, no sentido do que fazemos uns com os outros. Se o democrata
está aberto ao outro, seu grande desafio pode ser mostrar como produzir essa
abertura ao outro em nossa sociedade. Daí o sentido crucial do lema “como
conversar com um fascista?” que se torna, na contramão, um imperativo
experimental democrático que precisa ser antecipado na conduta de quem quer
produzir democracia hoje.
Não podemos apenas nos queixar que essa abertura não existe, mas
pensar em como deve ser produzida. Em outras palavras, a questão pode ser a de
como apresentar a experiência do outro a quem ainda não o concebeu? Penso nesse
caso, em uma didático-política e em uma estético-política. Infelizmente, não temos
as instituições convencionais agindo nessa direção. As instituições negam o
outro. Precisamos, portanto, mudar as instituições, ou criar instituições
capazes de contemplar o outro.
Sabemos que nossos povos nativos eram, e são, abertos ao outro,
assim como sabemos que os colonizadores não eram e que os “ruralistas” de hoje
não são. Sabemos que os machistas e sexistas, que os exploradores e
manipuladores em geral, também não são. Na base de todos eles está o princípio
do fascismo como ódio aos diferentes. Os diferentes que devem ser excluídos. O
fascismo produz opressão de um lado, de outro, seduz para a forma autoritária
de viver garantindo aos que vivem esvaziados de pensamento, ação e afeto, que o
mundo está bem como está. O fascismo cancela, ao nível do discurso exposto nas
mídias, nos púlpitos e palanques que constroem opiniões públicas e mentalidades
coletivas, a chance de pensar no que estamos fazendo uns com os
outros que poderia nos garantir uma vida mais prazerosa. Precisamos
revitalizar esta pergunta como pergunta coletiva capaz de orientar nosso
diálogo. O fascismo também colonizou os prazeres pelo estético-moralismo que é
o consumismo ao qual foi reduzida a antiga e emancipatória categoria ética da
felicidade. Mas não devemos aderir a isso só porque as coisas se
apresentam assim hoje.
Treino para o ódio
Dizemos há séculos “o poder corrompe” como se tivéssemos sido
treinados para essa citação formal, sem que saibamos muito sobre seu conteúdo.
Assim como muitos dizem “tudo o que não presta” imitando uns aos outros no
gesto espetacular de falar por falar. A fala por imitação se funda na citação.
O autoritarismo é “citacionalista”. Repete ideias lançadas no âmbito da
propaganda fascista, ela mesma viciosa e repetitiva. O autoritarismo depende de
sua repetibilidade, pois ele é uma máquina de produção de subjetividade pelo
discurso. Daí a importância da falação odiosa.
Não pensamos no que dizemos. Para entender o conteúdo do que
dizemos precisamos entender a forma com que dizemos. E isso é muito complicado.
O diálogo o é mais ainda porque não nos ocupamos em prestar atenção no que pode
ser um diálogo, ele mesmo um modo de conversar cheio de potências. Não fazemos
a sua experiência na microfísica do cotidiano que poderia nos dizer algo sobre
nossa potência de transformação em termos macrofísicos. Precisaríamos
pensar mais, é verdade, mas vivemos no vazio do pensamento, ao qual podemos
acrescentar o vazio da ação e o vazio do sentimento.
Atualmente, como em todas as épocas em que o autoritarismo é a
prática de extermínio da política, os cidadãos são chamados diariamente ao
treinamento do ódio. Sabemos que nenhum afeto é totalmente espontâneo, que
nenhum sentimento é natural. O treino para o amor ou para o ódio se dá pela
repetição dos discursos. É preciso repetir e aderir, copiar, imitar. Falar por
falar. Repetir o que se diz na televisão e nos meios de comunicação. Ficar
muito tempo ouvindo a mesma coisa para dizê-la de qualquer jeito. Ou dizer sem
sequer saber o que se diz. No gesto do mero “compartilhar” sem ler que se
tornou fácil (tanto quanto o “comprar com um clique” pela internet) sabemos que
estamos na mera reprodutibilidade da informação que nada quer dizer. Fugimos do
pensamento analítico. Fugimos do discernimento que ele exige.
Ora, a fuga do pensamento produz o seu vazio. Ela o
retroalimenta. Só a interrupção do círculo vicioso do pensamento vazio é capaz
de mudar o rumo autodestrutivo nos âmbitos micro e macropolíticos. O ódio é o
afeto capitalista que fomenta a morte diabólica do diálogo. Política é produção
simbólica. É sinônimo de democracia como laço amoroso entre pessoas que podem
falar e se escutar não porque sejam iguais, mas porque deixaram de lado suas
carapaças arcaicas e quebraram o muro de cimento onde suas subjetividades estão
enterradas.
A política como perfuração de muros ideológicos depende da
persistência da resistência. Depende de aprendermos o que pode ser um diálogo
enquanto guerrilha metodológica que precisa ser mais forte do que o ódio nesse
momento. Não acabaremos com o ódio pregando o amor, mas agindo em nome de um
diálogo que não apenas mostre que o ódio é impotente, mas que o torne
impotente.
Então precisamos começar a conversar de um outro modo, mesmo que
pareça impossível.
Blog
Marcia Tiburi > Como conversar com um fascista?
Valeu Companheiro! Enfim resolveu aceitar o meu convite e escrever em um lugar com maior cinsistência. Nada contra Facebook, WahtsApp ou qualquer outra rede social... Mas continuo preferindo os Blogs.
ResponderExcluirSeja bem vindo e sinta-se à vontade para escrever, divulgar, duplicar... enfim: PROVOCAR!
JB
Obs.: Substitua "cinsistência" por "CONSISTÊNCIA"... deslexia tardia.
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