Recebido de "Românticos Candangos".
Associação Brasileira de Saúde Mental
TRANSTORNO DE DÉFICIT DE ATENÇÃO E HIPERATIVIDADE (TDAH) E A INICIATIVA
EXEMPLAR DA SMS DE SÃO PAULO
A recente Portaria no.986/2014 da Secretaria
Municipal de Saúde de São Paulo vem de forma responsável regulamentar o uso da
metilfenidato no tratamento de crianças e adolescentes diagnosticadas com o
Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Tal procedimento se adequa
às atribuições do poder público em defender a saúde pública da população. Dada
a dimensão que o TDAH vem adquirindo, as condições para prescrição e
distribuição de metilfenidato (Ritalina) passam a ser rigorosamente restritas
em diversos países. Entre as razões, porque a Ritalina é classificada entre os
‘narcóticos’ a serem regulamentados, sendo considerada uma droga com alto
potencial de abuso e com severa susceptibilidade para provocar dependência
psicológica e física.
Desde meados da década de 1950, nossa sociedade
passou a se acostumar a tratar com psicofármacos seus adultos com diagnósticos
conhecidos ao longo da história da psiquiatria. Mesmo que se acumulem as
evidências dos efeitos deletérios das drogas psiquiátricas na maioria dos
adultos que as consomem, quando o tratamento psicofarmacológico é comparado com
os métodos psiquiátricos empregados na era dos grandes manicômios o
senso-comum, considera ser dos males o menor. Entretanto, desde a década de 80
começa-se a deparar com um fenômeno relativamente novo: a prescrição de drogas
psiquiátricas a crianças e adolescentes. A cada ano aumenta significativamente
o número de diagnóstico psiquiátrico e de prescrições para essa faixa etária.
Em 2013, segundo recentes dados oficiais dos Estados Unidos, aproximadamente
1/5 adolescentes no ensino médio recebeu o diagnóstico médico de TDAH, e 11%
das crianças no ensino fundamental receberam esse mesmo diagnóstico. Dessas
crianças e adolescentes diagnosticadas com TDAH, 2/3 receberam prescrições de
estimulantes como Ritalina. Esse mesmo fenômeno ocorre em diversas outras
sociedades. Na Inglaterra o número de drogas prescritas para o TDAH
(metilfenidato, incluindo a Ritalina) disparou para mais de 50% em seis anos.
Os efeitos deletérios desse fenômeno vêm sendo
analisados e denunciados por cientistas de diversas áreas relacionadas à saúde
pública, autoridades sanitárias e em artigos que chegam ao grande público
através da grande imprensa. Ao se diagnosticar TDAH e prescrever tratamento com
drogas psiquiátricas, o que se está promovendo é colocar um número
significativo de crianças e adolescentes em uma trajetória que as levará a uma
incapacitação por toda a vida. A justificativa? Atingir resultados imediatos
para problemas ordinários e que até então não eram objeto da medicina.
A portaria da Secretaria Municipal de Saúde de
São Paulo está coerente com as inúmeras evidências científicas acumuladas ao
longo dessas três décadas de tratamento do TDAH. Que os números das crianças e
adolescentes diagnosticadas com TDAH pareçam como aqueles de uma epidemia, para
que se justifique a medicação psiquiátrica da infância e da adolescência em
níveis sem precedentes e injustificáveis. Que o crescimento de diagnósticos de
TDAH e prescrições de estimulantes ao longo dos anos coincide com a enorme
campanha da indústria farmacêutica para divulgar esse transtorno e promover as
drogas junto aos médicos, psicólogos, educadores e famílias. Que as chamadas
‘pílulas milagrosas’ funcionam muitas vezes para não se modificar comportamentos
socialmente comuns, ainda que indesejáveis, como a negligência dos adultos com
as suas crianças e adolescentes e a impaciência frente a seus incômodos e
esperados modos de ser.
Que a sociedade tem sido objeto sistemático de
propagandas enganosas veiculadas na televisão e nas revistas para o consumo
popular, onde se afirma inescrupulosamente que o esquecimento infantil e as
baixas notas escolares são transtornos mentais e resultantes de desequilíbrio
químico no cérebro, e que portanto deve-se consultar um clínico especializado.
Que é comum médicos, pesquisadores, profissionais de saúde em geral, serem
pagos pela indústria farmacêutica para publicarem pesquisas e fazerem
declarações a encorajar colegas a fazer diagnósticos sem limites. E, muito em
particular, que são inúmeros e variados os efeitos iatrogênicos produzidos pelo
tratamento.
Sem dificuldades, poderíamos ampliar com
inúmeras outras referências científicas a revisão bibliográfica proposta na
Portaria no. 986/2014 da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, mas duas
referências merecem destaque. A primeira é de Allen Frances[1], um dos
psiquiatras americanos mais reconhecidos mundialmente, que foi o
responsável-chefe da edição do DSM-IV. É ele mesmo quem diz que o diagnóstico
TDAH cria uma falsa epidemia: “o DSM-IV contribuiu para três falsas epidemias
em psiquiatria – o excesso de diagnósticos de déficit de atenção, autismo e
transtorno bipolar ” (p. 139).
A segunda citação é a do renomado
neurocientista estadunidense, Bruce D. Perry [2], em uma recente declaração
feita em encontros com autoridades sanitárias da Inglaterra. Publicadas pelo
The Guardian e The Observer, eis alguns trechos: “a hiperatividade nas crianças
não é uma doença real”; o diagnóstico TDAH não passa de uma “descrição a
delinear uma ampla gama de sintomas”; “se observarmos como se chega a esse
rótulo, qualquer um de nós a qualquer momento se encaixaria em ao menos um par
desses critérios".
Perry acrescentou que os clínicos estão muito
rapidamente prescrevendo psicoestimulantes a crianças, “quando as evidências
apontam não existirem qualquer benefício a longo prazo”. Bruce Perry afirma
ainda (ipsis litteris): “tomar uma medicação influencia os sistemas de formas
que nem sempre compreendemos. Eu tendo a ser muito cauteloso com essas coisas,
principalmente quando a pesquisa mostra que outras intervenções são igualmente
eficazes e ao longo do tempo mais eficazes e que não têm nenhum dos efeitos
adversos.”
Com efeito, a perspectiva da Portaria da SMS de
São Paulo merece da comunidade científica e da população geral o mais
irrestrito apoio, na medida em que visa proteger a nossa população das
consequências patogênicas do tratamento não criterioso dos comportamentos
rotulados como transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. A SMS de São
Paulo se coloca como exemplar na construção democrática de formas de abordagem
dos problemas que afetam a saúde da nossa população, ao reconhecer o papel
central dos usuários dos serviços. As pessoas têm o direito de serem informadas
acerca das intervenções médicas e psiquiátricas e de serem envolvidas nas
discussões com respeito às opções de tratamento. Na medida em que crianças e
adolescentes não estão na posição de darem consentimento informado para o
tratamento da mesma forma como os adultos, a responsabilidade da sociedade é
ainda muito maior.
[1] Allen Frances. Saving Normal. A revolta de
um insider contra a falta de controle do diagnóstico psiquiátrico DSM-5, a
Indústria Farmacêutica e a Medicalização da Vida Cotidiana. USA: William
Morrow, Harper Collin Publishers, 2013.
[2] Bruce D. Perry, in Daniel Boffey,
Children’s hyperactivity ‘is not a real disease’, says US expert. The Observer,
Sunday 30 march, 2014.
Artigo consultado em 21/7/2014 (http://www.theguardian.com/society/2014/mar/30/children-hyperactivity-not-real-disease-neuroscientist-adhd
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